Neste ano, a Diretoria Executiva Nacional (DEN) escolheu o conto vencedor do I Concurso de Contos do Unacon Sindical para homenagear a carreira de Finanças e Controle no Dia do Servidor Público Federal. “A Filha de Maria ou a filha adulterina”, é o retrato de um dia de trabalho da aposentada Dalvina Macedo de Oliveira Souza, quando ainda estava na ativa. Hoje, muitas outras atribuições foram incorporadas à rotina dos que atuam na área de finanças e controle, no entanto, uma característica se mantém: o orgulho pela profissão. É por esse e outros tantos motivos que o Unacon Sindical segue firme na busca ininterrupta de melhores condições de trabalho para os Auditores (AFFC) e Técnicos Federais de Finanças e Controle (TFFC). Se a luta é diária, o Dia do Servidor Público Federal também é todo dia.
A filha de Maria ou a filha adulterina
por Dalvina Macedo de Oliveira Souza
Havia uma pilha de processos sobre a minha mesa. Peguei o primeiro da fila e comecei a analisar, era um processo de pensão de montepio. Montepio é um tipo de plano de previdência, criado pelo Decreto no 942-A, de 31 de outubro de 1890, para beneficiar os empregados fazendários e seus familiares. A pensão de montepio é vitalícia para as mulheres.
No começo eu virava as páginas mecanicamente, fazia uma análise técnica, imparcial, sem envolvimento pessoal ou emocional. O objetivo daquela “auditoria de pessoal” era verificar a regularidade das concessões de pensões por morte.
No decorrer da análise, percebi que as páginas daquele processo não forneciam apenas informações, contavam histórias de vida e de época. Os personagens tornavam-se reais conforme eu avançava na leitura daqueles papéis velhos, não velhos somente, mas antigos, muito antigos.
Concentrada, eu não percebi que as horas haviam passado. A minha companheira de trabalho se despedia, era hora do almoço.
Fiquei ali, no silêncio da sala abarrotada de processos. Era verão, o sol brilhava lá fora e aquecia as vidraças das janelas, fazia muito calor. Liguei o ar-condicionado e o zumbido que ele produziu quebrou o silêncio. Retornei à leitura do processo e pouco a pouco o zumbido monótono do ar-condicionado foi ficando distante.
Navegando por aquelas páginas, viajei no tempo. Passei a fazer parte daquela história vivida há várias dezenas de anos.
Eu estava num trem. Num banco à minha frente eu via um casal jovem, ela bem mais do que ele. Não se tocavam, mas qualquer pessoa mais atenta notaria a cumplicidade dos dois. Era o início de uma história de amor. O casal sofria, a família dela não aceitava o namoro dos dois, ele era desquitado e ela, solteira. Apesar dos obstáculos conseguiram ficar juntos. Tiveram uma filha e viveram felizes, não para sempre, mas por um tempo. A felicidade dos dois foi interrompida por um trágico acidente de trem que levou a vida dele.
Maria, daqui para frente é assim que a chamarei para melhor identificação da personagem. Maria solicitou a concessão da pensão de montepio para sua filha e esta foi negada. A filha de Maria foi classificada como “filha adulterina”, em razão de ser fruto do relacionamento de duas pessoas que estavam impedidas de se casar.
Naquela época o casamento era indissolúvel. O desquite rompia a sociedade conjugal, mas não desfazia o vínculo matrimonial. A pessoa desquitada não podia casar novamente. Por esta razão havia o entendimento de que os filhos de desquitados eram adulterinos.
Um parecer inserido no processo chamou a minha atenção, não era um parecer técnico, era bem pessoal. A maneira humana e peculiar na qual o autor tratou o assunto me deixou encantada. Não me lembro bem quais foram exatamente as palavras usadas naquele parecer, mas sei que foi mais ou menos assim:
Quando eu peguei este processo de pensão, eu não o escolhi, ele veio até a mim por acaso e qual não foi a minha surpresa ao constatar que uma brasileirinha de tão tenra idade era chamada de “filha adulterina”. Daí eu pergunto: qual foi o adultério que ela cometeu? Como pode uma criança ser chamada de adúltera? Sim, porque chamá-la de “filha adulterina” é o mesmo que chamá-la de adúltera. Nem mesmo seu pai ou sua mãe cometeram adultério, vez que sua mãe era solteira e seu pai, desquitado. Com o desquite, o dever de fidelidade conjugal é cessado, assim não há que se falar em adultério.
Creio eu, salvo melhor juízo, que a base legal para o indeferimento da concessão da pensão foi o Art. 358 do Código Civil de 1916, que veda o reconhecimento de filhos espúrios, ou seja, incestuosos e adulterinos. Entretanto a Lei 883 de 1949 passou a permitir o reconhecimento de filhos nascidos fora do casamento, desde que a união tenha sido dissolvida.
Dessa forma, não vejo impedimento legal que impeça a concessão da pensão para esta brasileirinha que nos seus verdes anos já sofre as penúrias da morosidade de processos que se arrastam nos reveses da burocracia.
Ademais, o progenitor desta brasileirinha contribuiu mensalmente por anos a fio com o fim de prover a sua subsistência e amparar o futuro de sua família. Agora sua filha se vê impedida de usufruir o benefício deixado por ele. Negar-lhe o direito à pensão é o mesmo que puni-la por ter sido gerada fora dos padrões legais da sociedade.
Quero deixar aqui registrado que eu não conheço esta brasileirinha. Ela também não me conhece e talvez nunca venha a me conhecer. Faço a sua defesa não só por ela, mas por toda criança que sofre discriminação por ter nascido fora do casamento.
Outras considerações foram feitas naquele parecer, mas o mais importante foi descrito aqui. Nas páginas seguintes não havia nenhuma alusão ao referido parecer, nem sequer um comentário foi feito. Entretanto constatei que dali para frente o processo foi analisado com mais presteza e atenção e finalmente a pensão foi concedida.
Quando terminei a leitura daquele parecer, fui envolvida por um sentimento de nostalgia. Deixei-me embalar por aquelas recordações que não eram minhas.
Olhei à minha volta e vi que a sala, antes solitária, agora estava cheia de fantasmas. Os processos ali existentes representavam pessoas, algumas ainda viviam, outras, não.
Quando minha companheira de trabalho retornou do almoço eu ainda estava ali, tinha me esquecido de sair para almoçar. Comentei a respeito daquela pensão e ela riu, disse que eu era muito emotiva. Não falei dos fantasmas, imagina.
Os fantasmas continuavam na sala, agora estavam encolhidos num canto, pareciam inibidos com a presença dela. Fiz um sinal em direção aos processos e os fantasmas um a um desapareceram neles.
Levantei-me e fui tomar um café, tendo por companhia a filha de Maria.