CGU encontra irregularidades em programa do governo

Banheiros fantasmas

A pompa dada pelo poder público para definir um dos itens mais básicos de saúde — o banheiro — não se mantém na hora de controlar e fiscalizar os milionários repasses para os “módulos sanitários domiciliares”. Na segunda reportagem da série sobre a sangria com o dinheiro da saúde, o Correio e o Estado de Minas mostram que dos R$ 1,6 bilhão destinados à área, fiscalizados pela Controladoria-Geral da União, pelo menos R$ 74,8 milhões sumiram em banheiros fantasmas por todo o Brasil. Foram identificadas obras inacabadas, inutilizadas, problemas nas licitações e despesas com os convênios sem qualquer tipo de comprovação.


A CGU encontrou também banheiros construídos em bares, igrejas, estabelecimentos comerciais e em casas de pessoas de classe média ou que já tinham um banheiro funcionando. O preço de cada módulo varia entre R$ 800 e R$ 2.500 no papel.

Projetos abandonados no interior do Ceará

Fortaleza — A marca está nas paredes. Cada família da Vila Esperança, em Acopiara (CE), no sertão cearense, que deveria receber um banheiro tem indicado, do lado de fora de casa, a sigla BN e um número. Quando a obra é completada, a marca é apagada. Percorrendo as ruas do bairro a sensação que se tem, então, é a de que nada foi feito. Em companhia da agente de saúde Maria de Fátima Rodigues Pinheiro a reportagem visitou as casas da região e encontrou banheiros inacabados e até mesmo os que nem começaram. O dinheiro chegou à prefeitura, que repassou à construtora. Mas as melhorias não. Na cidade, todo mundo tem ou conhece alguém com um banheiro inacabado ou prometido. Foram mais de R$ 750 mil para a construção de banheiros. Só o convênio 1527/2005, analisado pela CGU, prevê despesas de R$ 319.590 para a construção de 153 banheiros na vila. Cada um custaria R$ 2.088.

Na casa de Joana Dark da Silva, o esqueleto do banheiro virou casinha para a neta Maiara Pereira Santos, de 4 anos, brincar. Sem utilidade alguma, o espaço é bom, segundo Maiara, porque fica só para ela. Os potinhos vazios, organizados um ao lado do outro, fazem parte da brincadeira. “O que incomoda mesmo são os buracos. Vieram aqui no ano passado e deixaram essa fossa aberta”, reclama a avó. O sacrifício de Joana Dark é agüentar o mau cheiro do velho banheiro feito de taipa. “Ninguém consegue. Tem que ficar com a porta fechada e longe dele”, diz, com vergonha de mostrar o local.

Na casa ao lado, o mato já cresceu dentro do banheiro inacabado. “Fico usando o velho, fedido e sem água”, afirma Maria Antônia da Conceição. Sua maior reclamação é com a saúde da avó de 85 anos, que está doente. “Não tenho como dar banho nela, porque não temos chuveiro. Então, pego a vasilha e jogo água dentro de casa mesmo”, comenta.

O banheiro de Izeumar Teixeira, de 25, funciona. Só que foi ela e o marido que colocaram a pia, a porta e a caixa de descarga. “Tivemos que gastar do nosso dinheiro. Porque eles entregaram só a casinha e a fossa”. A Funasa aprovou projeto e liberou a verba para a construção completa do banheiro, incluindo até mesmo saboneteiras e suporte para o papel higiênico. Na casa dela, a empresa também usou um recurso comum em diversos convênios analisados pela CGU. O material comprado é para construir as quatro paredes do banheiro, mas a empresa aproveita uma das paredes da casa.

Pernambuco
A 31km do Centro de Iati, no agreste pernambucano, a 286 km da capital Recife, em pista de barro, encontra-se o povoado de Santa Rosa. Chegar à comunidade, porém, não é uma tarefa fácil. Não somente pela estrada precária, mas sobretudo por causa de uma ponte cuja construção parou na metade: há pelo menos 10 anos. Na pequena Rua da Palha, a moradora Josileide de Miranda Bastos, de 25, aponta a tampa do bueiro em frente a sua casa e faz questão de abrir. “O mau cheiro é insuportável, tivemos de colocar um saco plástico na saída do cano para conter o fedor”, explica. A tubulação por baixo da terra em Santa Rosa até existe, mas não funciona. As verbas foram liberadas pelo Ministério da Saúde há bastante tempo, mas obras apenas tiveram início, nunca fim.

Geraldo Cavalcante, 33, uma espécie de líder comunitário do povoado, apressa-se em garantir que tudo estará pronto ainda este ano. Curiosamente, a família dele foi uma das 35 que ganharam um banheiro de verdade, a partir de recursos de um programa do Ministério da Saúde. O sanitário é novinho em folha e foi construído há apenas três meses, mas não pode ser utilizado, pois a rede de esgoto nunca foi concluída. São apenas 30 banheiros erguidos, com bastante atraso desde a liberação de recursos, sem uso.

Cavalcante nos mostra todo o conjunto das obras, por onde passa a tubulação e onde será feito o tratamento dos resíduos. Tudo parado, quase abandonado, mas sem tirar a esperança dos moradores de Santa Rosa, em Iati. “As coisas estão melhorando”, garante, em frente a um lixão a ceu abérto e apontando para uma fossa aberta.

O jeito é improvisar

O município de Jordânia, no Vale do Jequitinhonha, recebeu, só para construção de banheiros domiciliares, R$ 351,5 mil para famílias de baixa renda, segundo relatório da Controladoria-Geral da União (CGU). Mas o desempregado Eudimar dos Santos, de 42 anos, por exemplo, que mora em casa de pau-a-pique na periferia da cidade, usa o quintal como banheiro. “Prometeram construir um sanitário para atender às necessidades da minha família, mas ninguém nunca veio aqui depois da promessa”, desabafa. Ele não tem condições de construir com recursos próprios e atualmente mora sozinho, em situação precária, desde que a mulher o abandonou.

Recursos para construção de banheiros não foram usados, segundo a CGU. Em Estrela, na zona rural de Jordânia, famílias carentes afirmam que viveram uma ilusão, quando foi anunciado que receberiam, por meio de recursos do governo federal, espaços para sanitários.

O lavrador Diolindo da Silva Gusmão, de 50 anos, mora com seis filhos numa casa simples de dois quartos. Segundo ele, a construção de um banheiro era certa, mas a promessa nunca saiu do papel. Para fazer as necessidades fisiológicas, os filhos precisam ir até o quintal. E como forma de garantir a privacidade da família, Diolindo plantou milho e mandioca na horta. “Assim as pessoas que passarem na rua, não vão nos ver”, disse, revoltado com a situação. Para a filha de 16 anos, o cuidado teve de ser maior. Ele improvisou um “banheiro” entre quatro pés de banana. “Cerquei as bananeiras com pedaços de pano para ninguém vê-la”, afirmou.

As adaptações na casa do lavrador não param por aí. O chuveiro da casa é uma torneira, que também fica no quintal. De tanto esperar, há dois meses Diolindo deu início à construção de um banheiro. Mas como o salário que recebe retirando leite nas fazendas da região é pouco, cerca de R$ 480 por mês, as obras estão paralisadas. Falta dinheiro para comprar cimento para o reboco e o material elétrico. “Preciso tirar da boca dos meus filhos para fazer uma obra que o governo tinha mandado verba”, reclamou.

Muitas famílias também sofrem com a falta de banheiros em casa no distrito de Ribeira do Capim Açu, também na zona rural de Jordânia. Algumas obras chegaram a ser iniciadas, mas os recursos foram suspensos pela prefeitura. Segundo o trabalhador braçal José de Souza da Silva, de 55 anos, há cerca de seis anos, funcionários da prefeitura estiveram em sua casa escolhendo o local onde seria realizada a construção com a verba, mas nunca mais voltaram. “Chegou até a levantar as paredes, mas as obras foram paralisadas, sem explicações. Tenho de usar o quintal para as necessidades”, disse.