Artigo de AFFC alerta para o risco da subnotificação de óbitos relacionados à Covid-19

“Menos informações de eventos mais graves pode afetar medidas estratégicas epidemiológicas e socioeconômicas, favorecendo também o risco moral dos cidadãos, ao serem menos cuidadosos por desconhecerem o real cenário da ameaça”. Leia na íntegra

 

 

O risco da subnotificação

População pode reduzir cuidado por desconhecer o real cenário da ameaça

 

 

* por Ana Cristina Marques Martins e Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

O autor inglês John Adams, no seu livro “Risco” (ed. Senac, 2009), ao tratar da confiabilidade dos registros de acidentes de trânsito, traz o conceito de “iceberg de gravidade”, uma constatação de que eventos com mais vítimas fatais apresentam informações coletadas mais precisas, por haver o envolvimento de vários atores, mais qualificados, e a sensibilização das famílias e da imprensa.

 

O óbito é um evento extremo e sem ambiguidades, o que tem como consequência a maior precisão do seu registro. Mas o mesmo pode não se dar com as suas causas, se diluindo estas em variáveis afetas à localização, à idade e a outras questões que podem gerar o fenômeno da subnotificação em relação a um determinado diagnóstico, em especial na situação atual da pandemia da Covid-19, que assombra o mundo pela velocidade e incerteza nos efeitos.

 

Dada a inovação do evento, os agentes responsáveis pelo registro têm dificuldades de enquadramento, e faltam testes em todos os rincões do país. E, quando existem, o prazo de resposta é por vezes demasiado, além de pela contaminação se demandar um processo de velório e cremação mais expedito, fatores citados que favorecem a subnotificação, agravados pelo fato de que, quanto mais a situação se complica, mais profissionais de saúde são necessários na linha de frente —e o registro pode assumir um papel secundário nessa batalha.

 

À medida que a pandemia avança, apesar da gravidade crescente, pode-se se ter o risco de a subnotificação de óbitos relacionados ao novo vírus também aumentar, podendo, no exemplo citado, gerar um “iceberg de antigravidade”, com menos informações de eventos mais graves —o que pode afetar medidas estratégicas epidemiológicas e socioeconômicas, favorecendo também o risco moral (compensação de risco) dos cidadãos, ao serem menos cuidadosos por desconhecerem o real cenário da ameaça.

 

Por ser um ato tão técnico e específico, como dar conta do risco de subnotificação? Busca ativa de suspeitos, regras claras e explícitas, capacitação, uso de tecnologia da informação e testes amplos, confiáveis, baratos e de retorno rápido.

 

Sabe-se que parte desses óbitos serão perdidos e futuramente estimados por meio de análises nos bancos de dados oficiais, pois, embora se espere uma subnotificação de casos relacionadas à Covid-19, ao mesmo tempo o registro de óbitos, ação já consolidada no país, manterá essas informações, que poderão ser usadas para que se faça no futuro estimativas mais confiáveis do perfil de mortes pela Covid-19.

 

Contudo, esforços precisam ser feitos para que se identifique o máximo possível de óbitos relacionados hoje, pois num cenário de pouco conhecimento sobre o perfil da doença, essa informação é útil para o subsídio das ações de prevenção de morte pelo novo coronavírus.

 

Pode parecer um esforço secundário face à necessidade de controle e manejo da doença, mas cada óbito identificado adequadamente trará informações essenciais para o enfrentamento da Covid-19. A notificação adequada também salva vidas, agora e depois.

 

 

* Ana Cristina Marques Martins

Doutora em epidemiologia (Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz)

 

* Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Auditor Federal de Finanças e Controle (AFFC) e Doutor em políticas públicas (UFRJ)

 

 

Fonte: Folha de S.Paulo