Artigo do AFFC Marcus Braga aborda a ótica regulatória para a Lei Anticorrupção

“Além da demanda genérica por melhoria regulatória, o anseio por regulação setorial específica entrou na pauta do dia da Administração Pública”. Leia na íntegra

Com a edição do Decreto Federal nº 10.411, de 30 de junho de 2020, que regulamenta a realização de análises de impacto regulatório pelos reguladores nacionais, sejam eles agências reguladoras formalmente instituídas ou não, o Brasil sobe mais um degrau na direção da desejada maturidade regulatória.

A medida é reflexo da agenda política da última década, consoante com a ordem econômica insculpida no art. 170 da Constituição de 1988, onde a liberdade econômica é um valor intrínseco; neste sentido, medidas que à restrinjam de alguma maneira devem ser criteriosamente avaliadas.

Acredita-se que um dos efeitos do novel diploma, e de seus paradigmas, será percebido no atual arranjo jurídico da Lei Anticorrupção-LAC (Lei n° 12.846/2013), em especial por lançar novos olhares sobre os impactos das medidas estatais, dentre as quais pode se incluir a LAC, e seus instrumentos de concretização (à exemplo do incentivo aos programas de compliance).

Ao analisá-los sob as lentes da teoria da regulação,  poderão ser ponderados os benefícios e os custos da política anticorrupção nacional, no que se refere aos impactos suportados pelos diversos atores do mercado.

Adotaremos para este artigo um conceito amplo de regulação, compreendendo todas as medidas estatais que influenciam empresas e pessoas a prática de determinados comportamentos ou inibem condutas indesejadas (BALDWIN; CAVE; LODGE, 2012).

Ao adotar esse conceito, entendemos o fenômeno da regulação espraiado por todas as atividades estatais, não estando restrito aos reguladores formalmente instituídos como agências reguladoras independentes.

1- O crescimento da temática regulatória na agenda política nacional

Desde 2007, com a criação do Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação – PRO-REG, as questões da qualidade e desempenho da regulação entraram na pauta política nacional.

O programa se voltou a difundir em nível nacional boas práticas adotadas internacionalmente, como o já citado uso de análises de impacto regulatório, a gestão de estoque regulatório e a adoção de canais estruturados de diálogo entre reguladores, regulados e sociedade.

A agenda da regulação ganhou força com a decisão do governo brasileiro em solicitar seu ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2017, dado que, para ingressar no organismo internacional, o Brasil deve aderir aos seus inúmeros instrumentos normativos, boa parte deles voltados à melhoria do ambiente de negócios nacional (incluindo a agenda anticorrupção), em especial por conta de normas dirigidas à governança de entes estatais, à qualidade da gestão pública e à melhoria regulatória.

A adesão aos normativos da OCDE, com o respectivo compromisso de implementação de seus ditames, é mais um passo na direção da melhoria da regulação.

Nesse particular, o fenômeno da corrupção e a sua limitação, pode ser compreendido também  como um problema regulatório, dado que ocasiona distorções que constrangem o interesse público, notadamente afetando o bem-estar social e econômico, e que demanda medidas que afetam a dinâmica dos mercados, conforme a seguir ilustrado.

2- A LAC e a regulação anticorrupção brasileira

Além da demanda genérica por melhoria regulatória, o anseio por regulação setorial específica entrou na pauta do dia da administração pública. É o caso da temática do combate à corrupção, uma  agenda hoje pujante, inicialmente impulsionada por um conjunto de acordos positivados em nosso ordenamento jurídico no âmbito do início do Século XXI: a  Convenção da OCDE (2000), a Convenção dos Estados Interamericanos (2002) e a Convenção das Nações Unidas (2005); complementa-se o cenário, conforme Coimbra e Manzi (2010), com o advento de um ambiente empresarial globalizado e competitivo, juntamente com o clamor público por transparência, pela valorização da democracia, pelo aprimoramento da accountability dos atores públicos e pela responsabilidade social das empresas,  um contexto complexo, mas que permitiu o avanço dessa pauta.

Em nível nacional, foi no bojo das manifestações de 2013 que algumas iniciativas inovadoras de combate à corrupção entraram na agenda, culminando, entre outras propostas legislativas, com a  edição da Lei n°12.846/2013, popularmente conhecida como Lei Anticorrupção (LAC), inspirada na UK Bribery Act (2011/Gb) e no Foreign Corrupt Practices Act – FCPA (1977/EUA), leis voltadas para o mercado e que versam sobre a questão da probidade com cânones inovadores.

Conduta indesejada, a corrupção é entendida como um abuso de poder, que rompe as relações entre o poder público e as suas partes relacionadas, desviando a finalidade da ação pública (KLITGAARD,1994).

São muitas as razões encontradas na teoria da regulação para combater o comportamento corrupto, visto que este contribui com as falhas de mercado, por conta do desequilíbrio do poder de barganha e do comportamento anticompetitivo, bem como  pelo fato da corrupção ser fonte de inegáveis externalidades negativas, como a quebra de confiança nas instituições e a desigualdade na distribuição de bens públicos, por subordiná-los à propina.

A LAC inaugurou um modelo de regulação anticorrupção brasileira, utilizando-se da tradicional toolkit regulatória, criando um novo regulador (a Controladoria-Geral da Uniao – CGU, no âmbito do governo federal), estabelecendo um plexo concertado de estratégias de prevenção, detecção e punição, materializados em três importantes pilares: os programas de compliance anticorrupção (1), na vertente preventiva-detectiva, o instituto investigativo do acordo de leniência, perspectivado na linha detectiva-punitiva e o Processo Administrativo de Responsabilização (PAR), dotado de enforcement para sanções reputacionais e pecuniárias.

Por outro lado, reconhecer a LAC como regulação anticorrupção nos força a olhar seus instrumentos sob as lentes da ação regulatória, que melhor combina controles e incentivos, na busca de conter as externalidades negativas, sem o uso de regramentos desnecessários ou excessivamente onerosos, tendo como praxe avaliar o impacto das medidas regulatórias no mercado regulado.

É aqui que se encontram as duas agendas governamentais, em uma visão complementar e convergente: a da melhoria da regulação anticorrupção do mercado e a do combate à corrupção.

3- Os efeitos de uma ótica regulatória para a discussão da Lei Anticorrupção

Neste ponto, emerge a questão central do artigo: O que essa visão regulatória contribui para a política anticorrupção trazida pela LAC? De antemão, acredita-se que adotar tal visão tem muito a contribuir, visto que, de pronto, traríamos para o cotidiano dos “reguladores anticorrupção” a inspiração das boas práticas regulatórias (better regulation), que, em apertada síntese, trazem a visão de que a ação do Estado deve se basear em evidências, entender seus impactos e onerar – ao mínimo – empresas e pessoas (EU,2017).

Dito de outra maneira, impõe-se ao dia a dia do regulador o exercício reflexivo acerca das consequências de suas ações (ou inações), colocando-os como elemento estabilizador de um complexo sistema, que busca atingir seus objetivos produzindo os menores impactos sistêmicos possíveis.

Trata-se de um grande desafio, porque o desenho tradicional dos órgãos de controle os modelou para o exercício da função “controle”, de viés avaliativo-corretiva (conformidade), com olhar voltado para as microrrelações entre controlador e controlado, onde não lhes era exigido uma visão macro acerca dos impactos de sua atuação.

Portanto, reconhecer a LAC como regulação anticorrupção importa reconhecer também que o controlador adquiriu novo status, o de “controlador-regulador”, e que sua tradicional função (controlar e corrigir) passa a ser um, e não mais o único, de seus instrumentos regulatórios. Neste sentido, o escopo de atuação dos órgãos de controle foi sensivelmente ampliado e sua dinâmica de sua atuação foi  consideravelmente impactada.

Ao atuar sob uma perspectiva regulatória, a “caixa de ferramentas” colocada à disposição do “controlador-regulador”, composta por instrumentos sancionatórios, detectivos e preventivos,  deve ser usada de maneira concertada e equilibrada, de modo à perseguir de modo eficiente o objetivo da LAC – melhorar a integridade das relações entre Estado e empresas – repelindo do convívio com a Administração Pública corruptos e corruptores e causando o menor impacto possível nas organizações e na vida dos pagadores de impostos.

 

Referências:

[1] O termo “compliance anticorrupção” é aqui utilizado de maneira genérica para referenciar as medidas adotadas pelas empresas voltadas ao atendimento do comando previsto no art. 7º, VIII, da LAC.

BALDWIN, R.; CAVE, M.; LODGE, M. Understanding regulation (2a ed.). New York: Oxford University Press, 2012.

COIMBRA, Marcelo de Aguiar/MANZI; Vanessa Alessi. Manual de Compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010.

EUROPEAN UNION(EU). European Commission. Better Regulation Guidelines. Brussels, 2017.

KLITGAARD, Robert E. A corrupção sob controle. Tradução de Octávio Alves Velho. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

 

DANIEL MATOS CALDEIRA – Doutorando em Administração Pública (Universidade de Lisboa).
MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA – Doutor em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (PPED/IE/UFRJ) e autor de livros na área de controle governamental
SANDRO ZACHARIADES SABENÇA – Mestre em Direito da Regulação (FGV Direito Rio).

 

Fonte: Jota