É preciso reinventar a PEC Emergencial e a reforma administrativa

Artigo do presidente do Unacon Sindical, Bráulio Cerqueira, é destaque no Estadão

O jornal O Estado de S. Paulo publicou nesta segunda-feira, 22 de fevereiro, o artigo “É preciso reinventar a PEC Emergencial e a reforma administrativa”, do presidente do Unacon Sindical, Bráulio Cerqueira. No texto, ele ressalta que as Propostas de Emenda à Constituição 186/2019 e 32/2020 – “assentadas na ideologia do Estado mínimo e numa versão radicalizada da austeridade fiscal em desuso num mundo pandêmico – promovem desestruturação dos serviços públicos, arrocho de salários, precarização do emprego e patrimonialismo”.

Clique aqui para ler a versão publicada no Estadão. O tema também foi tratado, de forma mais ampla, em outro artigo, disponível abaixo.

 

PEC Emergencial e Reforma Administrativa: a urgência é reinventa-las

Por: Bráulio Santiago Cerqueira

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 186/2019, chamada PEC da Emergência Fiscal, e a Reforma Administrativa (PEC no 32/2020) vêm sendo apresentadas como instrumentos essenciais de consolidação fiscal, resgate da credibilidade e recuperação da economia.

No passado não muito distante, os cortes de gasto público e o aperto monetário-creditício de 2015 restaurariam a confiança. Depois disso vieram o teto de gastos, a terceirização irrestrita, as reformas trabalhista e da previdência. Só não vieram crescimento, emprego e redução da pobreza: o PIB ao final de 2019 não chegou ao de 2013 (IBGE/Contas Nacionais), o desemprego e informalidade alcançavam 40% da força de trabalho antes da pandemia (IBGE/PNAD Contínua), o país voltou ao mapa mundial da fome.

No início da crise sanitária o ministro da economia  afirmava que “se promovermos as reformas, abriremos espaço para um ataque direto ao coronavírus. Com 3 bilhões, 4 bilhões ou 5 bilhões de reais a gente aniquila o coronavírus…mas sem espaço fiscal não dá”.

Pouco depois o orçamento de guerra demonstrou que espaço fiscal num país que emite moeda se relaciona menos a restrições financeiras e mais a disposições legais, e não foram R$ 5 bilhões, mas R$ 500 bilhões de gasto público direto (STN/Resultado do Tesouro) contra a pandemia, além de R$ 1,2 trilhão de injeção potencial de liquidez nos bancos (Banco Central do Brasil). Infelizmente também se provou que não basta dinheiro para derrotar o vírus, é preciso ciência, planejamento, cooperação federativa e gestão pública.

Em tempos negacionistas, contudo, fatos pouco importam: “se demorarem a debater as reformas [PEC Emergencial e Reforma Administrativa], flertarem com qualquer quebra de teto ou postergação de reformas, não tenho dúvida de que o preço do dólar vai subir, a inclinação da curva de juros vai aumentar, teremos pressão na inflação…acho que o Brasil tem seis meses para atuar e trazer essa confiança maior no avanço das reformas” (Solange Srour, Credit Suisse, UOL, 17 de jan. 2021).

Enquanto isso, na Europa discute-se reeditar a cooperação internacional e o planejamento do investimento público característicos do Plano Marshall (Valor Econômico, 2 de fev. de 2021), e nos EUA o novo governo anuncia estímulos de US$ 1,9 trilhão para a vacinação da população, aumento do salário mínimo, sustentação da renda das famílias, sobrevivência de empresas e transição para tecnologias limpas (InfoMoney, 14 de jan. de 2021).

Mas o que trazem de concreto as PECs da Emergência Fiscal e da Reforma Administrativa?

Justificada em 2019 como necessária à “contenção do crescimento das despesas obrigatórias para todos os níveis de governo”, a PEC 186/2019 congela por tempo indeterminado salários na administração pública, além de possibilitar sua redução em até 25% junto com jornada. No debate atual, outra razão é evocada para justificar os cortes em pessoal: a busca de fontes de financiamento para a prorrogação do auxílio emergencial.

A consolidação fiscal pregada pelos economistas de mercado, focada no gasto, desconsidera: (i) o papel de um projeto de desenvolvimento inclusivo e sustentável capaz de alavancar o crescimento e receitas; e (ii) uma reforma tributária progressiva que taxe as maiores rendas e os grandes patrimônios.

Reduzir salários e serviços à população não é necessário à recriação do auxílio emergencial porque num país que emite moeda são opções políticas e regras fiscais mal desenhadas, como o teto de gastos, que não permitem acomodar despesas a emergências como a atual. Quando houve disposição, como no ano passado com a criação do orçamento de guerra, os R$ 293 bilhões de auxílio emergencial e os R$ 78 bilhões de repasses a Estados e Municípios (STN/Resultado do Tesouro) não exigiram cortes em outras despesas. O resultado concreto desta expansão do gasto não foi uma crise de confiança, mas uma menor queda do PIB e um menor crescimento do déficit e da dívida pública do que os projetados; e com a fixação da Selic no mínimo histórico, houve queda do custo da dívida.

Também é perverso arrochar salários de servidores quando 95% do emprego público concentra-se no Poder Executivo dos três níveis da federação, com média salarial de R$ 4.200,00 (ME/RAIS, 2019). No governo federal, há 20 anos as despesas com a folha seguem estáveis em % do PIB, sem descontrole (STN/Resultado do Tesouro). Com ativos civis, o nível real de gastos caiu 3,7% em 2020, regredindo a 2014. Não há data-base no serviço-público, isto é, não há obrigatoriedade sequer de negociação ano a ano. 80% do funcionalismo federal obteve o último reajuste em janeiro de 2017, sendo que a Lei Complementar no 173/2020 congelou salários até dezembro de 2021, gerando perda de poder de compra de 20% pelo IPCA ou 50% pelo IGP-M.

Tampouco seria suficiente cortar salários para financiar o auxílio emergencial. Sem militares, que este ano terão os salários majorados (como ocorre desde 2019 ininterruptamente), a folha de ativos do governo federal é de R$ 140 bilhões (STN/Resultado do Tesouro). Por sua vez, as áreas de saúde e educação, prestadoras diretas de serviços à população, respondem por 65% da força de trabalho civil. Supondo inelegível aos cortes este mesmo percentual, a economia anual com redução de 25% nos salários no governo federal somaria R$ 12,3 bilhões, ou 4% do dispêndio com auxílio emergencial em 2020. À guisa de comparação, a Nota Técnica UNAFISCO n. 15/2020 calcula o potencial arrecadatório da reintrodução da tributação de lucros e dividendos das pessoas físicas em R$ 54 bilhões anuais.

O corte de jornada e salários de servidores, ademais, é um equívoco macroeconômico pois, de um lado, reduz a provisão de bens e serviços públicos numa situação de calamidade e, de outro lado, subtrai poder de compra do funcionalismo retraindo consumo, produção e renda agregadas. Estudo da UFMG sobre os Efeitos Contracionistas da PEC Emergencial estima perda no curto prazo de 1,4% do PIB associada a um corte linear de 25% de salários do conjunto dos empregados públicos.

Quanto à PEC 32/2020, seu objetivo declarado, além da consolidação fiscal, é a modernização do Estado. No entanto, a Exposição de Motivos não apresenta estimativa de impacto orçamentário, muito menos de resultados para a sociedade. A ausência de embasamento técnico ensejou a apresentação pela Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Servir Brasil) de Mandado de Segurança contra a tramitação no Congresso, ainda em análise no STF.

A reforma proposta não é administrativa, se restringindo à gestão de recursos humanos (RH), deixando de lado a estrutura do Estado, insumos, ferramentas de gestão, informação e as próprias entregas da máquina pública – o que não estranha num governo que propõe (PEC 188/2019) o fim do Plano Plurianual (PPA), único instrumento formal de planejamento global das políticas públicas.

Enquanto reforma do RH, a orientação da PEC 32/2020 é privatista e patrimonialista. Chama “modernização” a precarização das relações de trabalho no serviço público. Dentre as alterações constitucionais previstas, destaca-se: i) a introdução do princípio da subsidiariedade na administração pública, transferindo ao indivíduo e às famílias a primazia na resolução de questões sociais, um retrocesso ao período pré Estado de Bem-Estar; ii) a extinção do Regime Jurídico Único com a criação de 5 vínculos diferentes na administração, apenas um deles com estabilidade para os novos servidores; iii) o aumento do quantitativo e o livre preenchimento dos cargos de liderança e assessoramento, substitutos dos atuais cargos em comissão e das funções de confiança que possuem regras de acesso definidas em Lei; iv) a revogação do dispositivo que determina a manutenção de escolas de governo pelos entes federados; v) a atribuição ao presidente da República do poder de extinguir, sem discussão e autorização prévia do Congresso, universidades, órgãos como o IBAMA ou autarquias como o Banco Central; vi) o ataque à política de desenvolvimento produtivo com a vedação à criação de reservas de mercado para empresas nacionais, matéria estranha ao objeto da reforma e na contramão da soberania num mundo multipolar ameaçado pela pandemia.

Assim, em plena emergência sanitária, a proposta de reforma administrativa desresponsabiliza o Estado, institucionaliza o bico no serviço público, amplia a ingerência política na gestão e “premia” o grosso das categorias de servidores à frente do combate ao vírus com o fim da estabilidade. Esta última, vale lembrar, instrumento de proteção do cargo público e da sociedade contra a ingerência do poder político ou privado.

Por outro lado, estão ausentes ou pouco desenvolvidos na PEC 32/2020 temas como regulamentação do teto remuneratório na administração pública e gestão/avaliação de desempenho, os quais poderiam gerar convergência sem a necessidade de alteração da Constituição.

As PECs da Emergência Fiscal e da Reforma Administrativa, assentadas na ideologia do Estado mínimo e numa versão radicalizada da austeridade fiscal em desuso num mundo pandêmico, promovem desestruturação dos serviços públicos, arrocho de salários, precarização do emprego e patrimonialismo.

Cabe à sociedade e ao Congresso o exercício democrático e republicano de construção de freios e contrapesos aos retrocessos propostos. É necessário não reduzir o desenvolvimento em suas múltiplas dimensões aos ganhos de curto prazo com ações, juros e câmbio. É mais do que possível, sem reinventar a roda, retomar a agenda de regulamentações infraconstitucionais de melhoria de desempenho, produtividade e entregas da administração pública.