Aberração administrativa

Distante apenas 160km de Brasília, uma obra que já consumiu R$ 35,8 milhões dos cofres públicos apodrece a céu aberto. Iniciado há 10 anos, o projeto de irrigação de Três Barras, em Cristalina, atenderia 182 famílias de pequenos produtores. Mal planejado, mostrou-se superdimensionado e economicamente inviável. Jamais funcionou. Agora, o governo federal e o governo de Goiás querem investir mais R$ 20 milhões para concluir o projeto. Os próprios agricultores dizem que esse dinheiro também seria jogado fora. Auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) constata: a obra é resultado de uma “aberração administrativa” e a tendência é que nunca venha a funcionar, mesmo se corrigidas todas as suas falhas técnicas, por causa dos altos custos de operação.

O presidente da Cooperativa Agrícola de Três Barras, Belchor Ferreira dos Santos, afirma estar surpreso com a idéia de “concluir” a obra. “Se tem alguém solicitando dinheiro para esta obra, está com má intenção. Não funciona como está. O consumo de energia é muito alto. Chegaríamos no fim do ano com um prejuízo de R$ 5 milhões.” O presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Três Barras, Paulo Antônio Alves, já fez os seus cálculos. “Para irrigar oito hectares, cada um gastaria R$ 16 mil com energia a cada três meses. É totalmente inviável. Só se for plantar maconha, e olhe lá”, ironiza.

A auditoria da CGU afirma ser “contrário ao bom senso” o pedido de aplicação de mais recursos na obra, sendo mais econômico até mesmo o início de um projeto totalmente novo. “A obra mostrou-se resultado de uma aberração, especialmente pela forma como foi concebida, trazendo como resultado apenas o prejuízo aos cofres públicos, sem nenhum benefício à população”, escrevem os auditores. Eles acrescentam que a injeção de novos recursos no mesmo empreendimento resultaria em prejuízo. O último repasse feito pela União foi em 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso.

Executada pela empreiteira Gautama, a obra foi entregue em 2003. A licitação para o projeto foi feita pelo então diretor administrativo da Secretaria do Entorno de Brasília e do Nordeste Goiano, Flávio Candelot, em 1997. O projeto recebeu quatro termos aditivos, um deles quando Candelot já era titular da Secretaria do Entorno. Anos mais tarde, Carndelot foi preso na Operação Navalha pela atuação como lobista da Gautama.

“Força obscura”
Segundo a CGU, o convênio entre o governo federal e o de Goiás baseou-se em projeto inadequado, que não contava com outorga do uso de água nem licença ambiental. Entre os problemas estavam a vazão insuficiente dos rios e o alto custo da energia elétrica. O projeto original previa a aplicação de tubos de ferro fundido em toda a rede de distribuição, com mais de 100km. A Gautama teria instalado tubos de aço, mais baratos e de menor qualidade, em parte do projeto. Nem por isso houve redução no preço desse item, que representou 47% do orçamento total da obra. Ao todo, foram instalados 74km de tubulações. Auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) apontou sobrepreços que variavam de 271% a 577% para itens expressivos do orçamento.

A CGU observa que os prejuízos seriam evitados se o poder público tivesse acatado as denúncias de entidades e produtores. Em janeiro de 1999, quando o governo federal havia liberado R$ 9,3 milhões, a Associação dos Engenheiros Agrônomos de Cristalina (Aeacris) já apontava falhas graves no projeto. Depois disso, foram liberados mais R$ 30 milhões. “A execução desse projeto conta com uma poderosa força propulsora obscura, que impulsionou a sua continuidade, não obstante as denúncias e as irregularidades graves comprovadas pelos órgãos oficiais”, destaca a Controladoria.

Paulo Alves lembra que os próprios produtores denunciaram as irregularidades no início da obra. “Nós avisamos o governo, a Câmara, o Senado, mas não fomos ouvidos. Naquela época, o governo tinha gasto só R$ 2 milhões. Agora que o rombo é de R$ 40 milhões, querem que a gente assuma tudo”. Com o fracasso do projeto, ele está quase falido. Vive da venda de frangos na feira. Já se desfez da maior parte da ponta de gado que tinha, cerca de 80 vacas.

“Remendo”
Em 2004, o TCU alertou que os equipamentos eletromecânicos da obra seriam danificados pela obsolescência. No ano passado, a CGU constatou que a obra encontrava-se “não só abandonada, mas sucateada e depredada”. Em outubro do ano passado, a Secretaria do Planejamento de Goiás informou à Controladoria o que seria necessário para a conclusão do projeto: aquisição complementar de tubos, um conjunto de moto-bombas para a estação de bombeamento 3, subestações complementares e 10,5 km de rede elétrica. Mas a CGU entende que, sem um novo estudo de viabilidade técnica, econômica e financeira, “da mesma forma como falhou o projeto original, falhará também o seu remendo”.

O fracasso do projeto de irrigação também levou à falência a Cooperativa Agrícola de Três Barras, implantada com recursos do Ministério da Reforma Agrária. A criação de porcos e o tampo de leite funcionaram por 10 anos, a partir de 1993. A cooperativa contava com 90 vacas de leite e produzia três mil leitões por ano. O abatedouro de aves ficou pronto em 2002, mas não chegou a abater um único frango. A produção de milho, feijão e hortifrutigranjeiros no perímetro irrigado seria fundamental para consolidar todo o complexo produtivo. Restou a cada produtor uma dívida de R$ 45 mil.

abatedouro de aves da cooperativa não chegou a funcionar

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O Ministério da Integração Nacional enviou nota técnica ao Correio esclarecendo que as obras do projeto Três Barras foram efetuadas pela Construtora Gautama por meio de contrato firmado com o estado de Goiás, e não com o ministério. “O contrato do estado com a Gautama foi encerrado por não haver mais saldo contratual em vista de alterações efetuadas no projeto inicial”, diz a pasta.

Segundo afirma o ministério, as ações até agora e efetuadas “encontram-se em consonância ao determinado nos acórdãos 1.637/2004 (plenário) e 612/2005 (2ª Câmara) proferidos pelo TCU, que solicita a colocação em operação das estações de bombeamento concluídas com soluções técnicas que impliquem menor aporte de recursos”. A nota ministerial afirma que o governo de Goiás propôs concluir o projeto com recursos da contrapartida do estado, no valor de R$ 1,9 milhão.

A Secretaria do Planejamento e Desenvolvimento de Goiás (Seplan) afirma que recebeu o projeto em 2003, com a maior parte da obra concluída, mas faltando serviços complementares: “Desde então, o governo de Goiás vem buscando alternativas para conclusão do projeto”. A Seplan confirma que vai utilizar os recursos da contrapartida do estado num “reestudo do projeto”, de modo a atualizá-lo e redirecioná-lo para atender aos interesses dos produtores. “O restante seria utilizado em rede elétrica, vias de acesso, reparos de equipamento.”

Mas a Seplan salienta que ainda serão necessários mais recursos para concluir a obra, num total de R$ 16 milhões. “O governo de Goiás realizará, nos próximos dias, uma audiência pública na área do projeto, com produtores assentados e lideranças do município, para discutir o melhor caminho a seguir. Um dos problemas é o alto custo operacional dos sistemas de irrigação”, diz a nota.