Jorge Hage concede entrevista

Com mãos e pés atados

Alana Rizzo 


O nome da pasta ainda é pouco conhecido: Controladoria-Geral da União (CGU). Mas de cartões corporativos, diárias de servidores e pagamento de convênios, os brasileiros já ouviram falar, e muito. O controle desses e de outros gastos do governo federal é tarefa do advogado baiano Jorge Hage. Desde que assumiu a pasta, em 2006, o ex-prefeito de Salvador, ex-deputado estadual e federal travou uma batalha diária contra a corrupção. Sua arma? Transparência. “O melhor desinfetante é a luz do dia”, diz o ministro do controle e da transparência, avisando de cara que a frase não é sua, mas que a incorporou ao cotidiano. Hage tem nas mãos o poder de fiscalizar os recursos federais, mas elas estão atadas: o ministro não pode punir quem gasta mal ou desvia o dinheiro público. “Só podemos agir em relação aos agentes públicos federais. Em relação aos ministérios, cabe à CGU apenas recomendar que adotem os procedimentos cabíveis”, explica. Nesta entrevista ao Estado Minas, o ministro fala sobre a série Sangria na Saúde, publicada ao longo da semana. As reportagens mostraram que, dos R$ 1,6 bilhão repassados pelo Ministério da Saúde aos municípios e fiscalizados pela CGU, R$ 426,5 milhões desapareceram no submundo da política e da má gestão. Menos de 10% dos prejuízos voltam aos cofres da União, segundo Hage. Ele critica falhas na legislação que permitem a prescrição de crimes, ironiza o pedido de recomendações feito esta semana pela Funasa e alerta: auditores são ameaçados de morte durante as visitas às cidades sorteadas para ser fiscalizadas. O ministro foi o único representante do governo federal que aceitou comentar as reportagens do EM – por uma semana, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, responsável pela gestão dos recursos da pasta, negou os pedidos de entrevista.

A reportagem leu os 1.341 relatórios de fiscalização da CGU para identificar os desvios. Nos documentos, as equipes de auditoria apontam as principais irregularidades e os prejuízos aos cofres públicos. Mas o que acontece depois das fiscalizações ?

Nós encaminhamos os relatórios ao ministério gestor dos recursos, porque é ele que tem de tomar a providência seguinte, que é a instauração de um procedimento que se chama Tomada de Contas Especial, que vai aprofundar aquela constatação, identificando os responsáveis e quantificando o valor do prejuízo. O responsável é intimado ao órgão repassador para devolver o montante aos cofres públicos. Se ele não o devolve, e é o que ocorre na maioria das vezes, o processo vai ao Tribunal de Contas da União (TCU), que é a instância seguinte. O TCU pode aplicar sanções administrativas, como multa e a condenação a devolução, quando é o caso. Se ainda assim o dinheiro não é devolvido, o passo seguinte é encaminhar para a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, à Advocacia-Geral da União (AGU), para que seja feita a cobrança pela via judicial. Outro destinatário é o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público Estadual (MPE), que ajuízam ações penais e civis. A AGU também pode ajuizar ações civis. Todas dependem do Poder Judiciário, que aí demora cinco, 10, 15 anos. Não por culpa do Judiciário, mas por conta da legislação.

Somente uma mudança na legislação processual brasileira pode acabar com o clima de impunidade?

Fico até rouco de dizer isso. Aponto a legislação atual como um dos grandes entraves para o fim da cultura da impunidade a revisão da legislação, tanto no campo penal quanto civil. É preciso suprimir uma série de recursos. Alguns deles só existem aqui, como o recurso de embargo infringente, que copiamos da velha legislação portuguesa e nem Portugal tem mais. É uma infinidade de recursos. E quando finalmente chega ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), você ganha garantido no mínimo três anos, porque o STJ está congestionado. É impossível eles darem conta em menos de três anos. Depois ainda há o recurso para o Supremo Tribunal Federal.

E aí os crimes já prescreveram?

É. Qualquer advogado medianamente capaz pode prolongar um processo no Brasil por 10 anos. Se for um escritório de peso e competente, garante 20 anos. E os interessados nisso – os corruptos e corruptores – são os que podem pagar os melhores advogados do país. Aí, então, temos a dificuldade tanto do processo penal como do civil, como também para a cobrança do ressarcimento. Por exemplo, aqui na CGU se instaurou uma TCE, mas pela lei o gestor pode querer não atender esse processo administrativo porque não tem nenhuma conseqüência para ele. Aí vai para o TCU, que é quem tem força para condená-lo. O que acontece se ele não pagar? Nada, porque o TCU não tem executoriedade. Manda para a AGU, que começa um processo no Judiciário para cobrar. E é um processo executivo, que sofre dos mesmos problemas dos outros. Aí passam 10 anos para cobrar. O retorno dos recursos desviados é baixíssimo não chega a 10%.

Então, a CGU não pode punir quem comete irregularidades?

Nossa função legal é fiscalizar, e não punir. Temos um outro braço que é a Corregedoria, que faz punição no âmbito administrativo restrita aos agentes públicos federais. Desde 2003, colocamos para fora do serviço público federal 1.785 pessoas. Quase 70% dessas demissões são por improbidade administrativa e corrupção, como recebimento de propina, valimento do cargo, lesão aos cofres públicos.

Mas a CGU pode cobrar dos ministérios?

A gente recomenda que sejam sanadas as irregularidades, que se adotem tais sanções, melhorias gerenciais. Mas, se eles não adotam, a única coisa que podemos fazer é encaminhar para o TCU e o MPF. Não temos poder punitivo. No limite, eu posso, por exemplo, pedir instauração de um processo administrativo contra um gestor omisso.

Há pouco tempo a CGU recomendou a suspensão dos repasses para os municípios investigados na Operação João-de-barro, da Polícia Federal. Essa foi a primeira vez que isso aconteceu ou faz parte do trabalho da Controladoria ?

Foi a primeira vez com esta dimensão. Mas houve casos isolados também. Neste caso, a recomendação foi em conjunto com a coordenação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Durou dois meses, enquanto se tomava uma série de medidas preventivas. Era uma recomendação cautelar e temporária. Liberamos os repasses sujeito, a um regime de acompanhamento especial, que significa que as auditorias internas de cada órgão têm que acompanhar a liberação de recursos e as áreas de engenharia precisam redobrar a fiscalização sobre aquelas obras. Estamos despachando equipes para todos os municípios envolvidos. Já estamos em cerca de 40 cidades. Mas a suspensão do repasse não é algo desejável. Só se deve fazer em último caso, porque o punido acaba sendo a população.

Na última semana, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) enviou ofício ao senhor questionando se deveria suspender os repasses aos municípios citados na série de reportagens Sangria na Saúde, que teve como base os relatórios de fiscalização da CGU. O sr. já fez alguma recomendação?

O ofício não chegou aqui. Pegamos no site da Funasa. Essa decisão (suspender os repasses), em primeiro lugar é dele. É do gestor, e não da CGU. Ele é quem deve avaliar se tem condições de acompanhar os programas que custeia ou se precisa suspender porque não tem condições de acompanhar devidamente. O controle dos recursos transferidos é do gestor, isso está na lei.

Por que é tão difícil esse controle por parte dos ministérios?

Os ministérios têm dificuldade de pessoal. O importante é que eles tenham consciência de que é a responsabilidade permanente é deles. Está na lei, ou seja, cada órgão que repassa recursos tem a obrigação de fiscalizar. Evidente que eles recebem dezenas de relatórios da CGU mostrando as irregularidades. A Funasa, por exemplo, alega que não recebeu o último relatório, que já foi encaminhado ao Ministério da Saúde. Mas dos municípios citados da reportagem só três são do 25º sorteio. De todos os outros, já receberam e há muito tempo. Então, não há desculpa.

O sr. é baiano de Itabuna e seu estado apresentou o maior número de irregularidades na área da saúde. Como se sente?

O Nordeste e o Norte são campeões de irregularidades. Isso não surpreende ninguém que tenha mínima noção sobre os diferentes estágios de atraso políticos nas regiões brasileiras. A corrupção tem ligação direta com o atraso político nas regiões, em relação às dificuldades da população, pelo nível de instrução, e até o acesso aos órgãos de imprensa para fazer denúncia. As rádios locais são dos chefes políticos. Por isso, quando nossas equipes chegam é uma festa. Há municípios em que as pessoas correm atrás para entregar denúncias.

As equipes de auditorias também sofrem ameaças?

A proporção é a mesma e nas mesmas áreas. O chefão político se considera o dono da vontade popular. Em alguns lugares, os servidores precisam de cobertura da Polícia Federal para entrar. Há pouco tempo, precisei pedir apoio em Minas. Em Teófilo Otoni, a equipe fotografou uma empresa que tinha ganhado uma licitação. No endereço, funcionava um salão de beleza e eles começaram a ser seguidos. Houve município em que nossa equipe ficou presa no hotel e tivemos que resgatá-la com a ajuda da Polícia Rodoviária Federal. São vários exemplos. Em Taperoa, na Bahia, o prefeito se recusou a entregar os documentos para análise, precisamos chamar o Ministério Público. Tem de tudo.

O trabalho de fiscalização in loco é fundamental. Qual é a sua equipe? Ela está completa?

A legislação prevê 5 mil servidores. Hoje, tenho 2 mil. Mas as perdas são permanentes, por conta dos salários melhores no TCU, no MPF, na AGU. No mínimo, eu precisava do dobro do pessoal que tenho. Mas não é só isso. É preciso dotar cada ministério de equipes mínimas para cumprir o papel de controle primário para acompanhar os seus programas. Não cabe ao órgão central fazer isso. Nós fazemos auditoria por amostragem.

Mas o sr. não acha que os ministérios acabam deixando esse trabalho nas mãos da CGU? O sr. cobra nas reuniões ministeriais uma mudança de postura ?

O erro está aí. Uma coisa é o controle primário, outra coisa o controle central. Cobro isso sempre. Encaminho documentos, circulares. Minhas equipes se reúnem com a dos ministérios, expondo essa problemática. É nosso dever orientá-los. Até porque poucos têm auditoria. O da Saúde tem o Denasus, a Caixa tem uma muito boa, que cuida das obras de saneamento e habitação. A Funasa tem uma boa auditoria, mas é muito pequena. O Fnde (Educação) também tem pouca gente.

Além das auditorias, o sr já encaminhou ao Congresso mudanças na legislação também. Como garantir o andamento destes projetos?

Por que será que estão parados, né? Encaminhamos projeto de lei que torna crime o enriquecimento ilícito – que até hoje não é crime. O corrupto não deixa prova, a perícia do Instituto de Criminalística não consegue pegá-lo. A grande dificuldade é ter prova. Tem também o projeto sobre conflito de interesses, que engloba a quarentena, que alcança muito poucas autoridades públicas e tinha uma duração de apenas quatro meses. Nós estamos estendendo a quarentena do governo federal para um ano e abrangendo um número infinitamente maior de autoridades, ao deixar o cargo. Além disso, estamos vedando de forma expressa a prática do que nós chamamos de funcionário anfíbio: é aquele que toma uma licença para interesse particular sem vencimentos e que no período de licença vai prestar consultoria para empresas na área de trabalho dele, para vender informação privilegiada.

Mas o sr. acredita na aprovação desses projetos num Congresso em que tantos deputados e senadores estão sendo investigados ?

Tenho por dever de ofício acreditar que as coisas vão melhorar sempre. Eu não tenho nenhuma dúvida de que o que nós estamos vivendo aqui me autoriza a pensar isso.

O sr. se considera um brasileiro indignado ?

Indignado é pouco. Não tenho o direito de ficar apenas indignado. Indignado pode se sentir o cidadão, mas no meu cargo isso não basta. Além de indignado, estou aqui para agir e é o que estou fazendo. Penso em combater a corrupção 24 horas por dia, noite, sábado, domingo, feriados e dias santos. “