Dinheiro público, interesse privado

Dinheiro arrecadado pelo Centro de Seleção e Promoção de Eventos (Cespe) com a realização de concursos públicos servia para custear viagens de interesse privado, segundo auditores da Controladoria-Geral da União (CGU). As despesas com passagens aéreas, diárias de hotel, comida e bebida eram pagas com autorização da ex-diretora-geral da instituição, Romilda Guimarães Macarini.

Ela, aliás, também era beneficiada com tal irregularidade. Participou de ao menos dois eventos direcionados às atividades de duas empresas de consultoria que mantinha com o marido, André Vieira Macarini. Um deles foi realizado em um resort na Costa do Sauípe (BA), o maior complexo de turismo, lazer e negócios da América Latina. Tudo pago pelo Cespe.

O seminário 6º Brasil Negócios ocorreu de 26 a 29 de agosto de 2004, no Hotel Renaissance Resort, e reuniu 335 participantes. “Exame do conteúdo dos eventos do Brasil Negócios demonstrou que trata predominantemente de aspectos pertinentes ao meio empresarial”, afirmam os auditores em relatório sobre as contas do Cespe. O documento de 186 páginas é tornado detalhado pelo Correio em série de reportagens iniciada na última sexta-feira.

Os técnicos do Governo Federal destacam ainda que o Cespe foi a “única unidade gestora (pública) a participar do evento”. Eles ressaltam ainda que “mesmo examinados exercícios anteriores, não foi localizada qualquer contratação congênere, pelo Cespe ou qualquer outra unidade gestora”. Para tentar entender a ida de Romilda à Costa do Sauípe, os auditores consultaram o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). Descobriram as duas empresas em nome dela e levantaram a suspeita do interesse privado.

Tudo em família
Romilda e André Macarini eram sócios de duas empresas quando ela dirigia o Cespe: AVM Consultores Associados Ltda. e AVM Cursos e Treinamentos S/C. A primeira firma era sediada em Brasília, tinha como atividade principal “assessoria em gestão empresarial” e foi extinta em 3 de setembro de 2004. A outra tinha sede em Feira de Santana (BA) e era destinada a “cursos de aprendizagem e treinamento gerencial e profissional”. Estava na ativa pelo menos até a conclusão do relatório enviado ao MPF, em fevereiro de 2006.

Na prestação de contas do Cespe analisada pela CGU consta que o órgão da UnB pagou as despesas de Romilda e de outro diretor do Centro referentes ao evento na Costa do Sauípe. Os valores não foram revelados pelos auditores. Mas, na internet, são oferecidos pacotes de três dias (como o pago pelo Cespe) no Hotel Renaissance Resort a partir de R$ 855 por pessoa, em baixa temporada, sem transporte aéreo.

Pela prestação de contas do Cespe, quem viajou à custa da instituição foi Romilda e um outro diretor. No entanto, entre a documentação apreendida durante a Operação Câmpus Limpo, da Polícia Federal — que deu origem à apuração da CGU —, os auditores encontraram um CD com fotos “que indicavam o comparecimento de André Macarini e Romilda Macarini ao 6º Brasil Negócios”. Ou seja: o casal viajou junto para um evento de interesse privado custeado pelo Cespe, uma entidade pública.

Diante da documentação, os auditores do Cespe concluíram, no relatório feito a pedido do Ministério Público Federal (MPF), que a participação dos dois ex-diretores do Cespe no evento foi totalmente ilegal. “A participação de ambos não observou os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e eficiência que devem nortear a gestão dos recursos públicos”, afirmaram os técnicos da CGU.

Nepotismo
Essas e outras acusações feitas pelos auditores da CGU são detalhadas no relatório de 186 páginas entregue ao MPF, que prepara ações contra os supostos responsáveis e beneficiários das irregularidades. O conteúdo do documento era mantido sob sigilo, até o Correio iniciar a série de reportagens, sexta-feira da semana passada.

Conforme revelado na matéria de domingo, Romilda também é acusada, entre outras coisas, de manter 23 parentes como prestadores de serviços do Cespe durante o período em que esteve à frente da instituição vinculada à Universidade de Brasília (UnB). De 1997 a 2005, ela autorizou o pagamento de mais de R$ 2 milhões aos familiares. Além disso, Romilda se concedeu R$ 1,2 milhão por trabalhos feitos para o Cespe, além do salário mensal de R$ 3.080,50 que recebia por ocupar o cargo de direção.

Na lista dos 23 parentes da ex-diretora está o marido dela. André Macarini recebeu R$ 19,6 mil por meio de quatro pagamentos efetuados em 2005 por serviços prestados à instituição dirigida pela mulher. Além dele, recebiam regularmente do Cespe filhos, sobrinhos e outros parentes do casal Macarini.

Há uma semana, a equipe do Correio tenta entrevistar a ex-diretora Romilda Guimarães Macarini. Diversos recados foram deixados na casa dela, mas ela não retornou nenhuma das ligações. O marido de Romilda afirmou que ela só se pronunciará em sua defesa perante a Justiça Federal, onde já responde a outras ações por suposta má administração de dinheiro público quando dirigia o Cespe.
ANVISA EM ALERTA
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pediu à Controladoria-Geral da União (CGU) informações sobre a denúncia de que 21 aprovados no concurso da Anvisa, realizado em 2005, seriam prestadores de serviços do Cespe beneficiados com uma suposta fraude. O caso está sendo investigada em uma apuração interna da Agência, informou ontem a assessoria de comunicação do órgão. A suspeita levantada pela CGU foi revelada em reportagem do Correio publicada sábado passado.

entenda o caso
Denúncias em série

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Desde sexta-feira, o Correio divulga supostas irregularidades ocorridas na administração do Cespe de 1996 a 2005, que somam R$ 579 milhões. Elas constam em um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU), ao qual o jornal teve acesso com exclusividade. Veja, a seguir, as denúncias:

Sem concurso
Um total de 200.628 pessoas receberam dinheiro do órgão ligado à UnB sem passar por concorrência pública ou integrar o quadro de funcionários da instituição. Ao todo, elas ganharam R$ 286 milhões.

Renda dupla
Na lista de beneficiários estão 57 ocupantes de cargos de direção da UnB. Ou seja: além do salário da universidade, eles recebiam de outra fonte, sem declarar a segunda à Receita Federal.

Sonegação
Os dirigentes do Cespe foram acusados de omitir da Previdência Social remunerações pagas a todas as pessoas contratadas para prestar serviço à instituição. Eles recebiam pelos trabalhos sob a rubrica de “bolsas científicas”, isentas de pagamentos de tributos

Fraude em concursos
O Cespe é suspeito de favorecer funcionários e prestadores de serviços em concursos públicos. Ao menos 35 pessoas aprovadas em concursos organizados pelo Cespe trabalhavam para a instituição na época dos exames.

Nepotismo
A ex-diretora-geral do Cespe, Romilda Guimarãoes Macarini, manteve 23 parentes como prestadores de serviço durante o período em que esteve à frente da instituição. Além disso, ela se concedeu R$ 1,2 milhão por trabalhos feitos para o órgão, além da remuneração de R$ 3.080,50 que recebia todo mês por ocupar o cargo de direção. Entre os parentes contratados, que receberam mais de R$ 2 milhões, estão o marido, o filho e a filha, o genro, um cunhado, seis irmãos, seis sobrinhos, quatro filhos de sobrinhos, a esposa de um sobrinho e o marido de uma sobrinha.

Gastos duvidosos
O Cespe costumava cobrir todo tipo de despesas pessoais de alguns funcionários. Muitas vezes, tais gastos nem eram comprovados. Pelo menos R$ 23 mil foram gastos irregularmente com reembolsos feitos a prestadores de serviços contratados de 1996 a 2005. Casquinhas de siri, bobós de camarão, meia-calça, tintura para cabelo, absorventes, multas de trânsito, persianas de quitinetes residenciais são exemplo de despesas pagas pelo órgão.

Empresas privadas
Um grupo de empresas privadas também faturava alto com o Cespe, sem enfrentar concorrência, mesmo prestando serviço ou vendendo produto a um órgão público. Hotéis, bufês, gráficas, lojas de informática, agências de turismo, entre outras, juntas, ganharam R$ 3,8 milhões. Para burlar a lei de licitações, o órgão fracionava os pagamentos para as parcelas ficarem abaixo de R$ 8 mil.