Artigo compara jornada de trabalho dos países da OCDE com a realidade brasileira

O brasileiro trabalha, em média, 149 horas a mais em um ano que um cidadão de um país membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). É o que aponta o artigo “Cala a boca e trabalhe!” assinado pelo Auditor Federal de Finanças e Controle (AFFC) Marcelo Perrucci. O autor recorre à mesma fonte que o governo utilizou para justificar a idade mínima de 65 anos para aposentadoria na reforma da Previdência, para comprovar que a jornada de trabalho do brasileiro e muito maior que a dos países membros da OCDE. Este é o segundo artigo de Perrucci sobre o tema. O primeiro, “O que não te contaram sobre a Reforma da Previdência”, teve ampla repercussão da imprensa (relembre aqui).

 

“Caso aprovada, a reforma da Previdência irá resultar em cidadãos que trabalharão mais horas e viverão menos anos do que cidadãos dos países tomados como ‘modelo’ pelo governo”, denuncia Perrucci.

 

O artigo revela que o Brasil tem uma realidade bastante diferente dos países da OCDE. Seja na expectativa de vida, seja na jornada de trabalho, seja na taxa de informalidade no emprego. Confira, abaixo, a íntegra do texto opinativo. 

 

 

Cale a boca e trabalhe!

Outro exemplo da perversidade da Reforma Proposta

por Marcelo Perrucci

 

Depois de explicar “O que não te contaram sobre a Reforma da Previdência”, vou falar mais um pouco sobre o tema, apresentando outro aspecto ainda inexplorado: a relação de anos trabalhados com a jornada de trabalho brasileira.

 

Conforme expliquei no primeiro texto, o governo apresentou na exposição de motivos da PEC 287/16, também chamada de “Proposta de Reforma da Previdência”, um gráfico onde usa os países da OCDE para justificar a idade mínima cabalística de 65 anos para aposentadoria. Pois, por essa lógica, se eles fazem assim, então nós também devemos fazer, não é mesmo?

 

Colo abaixo o gráfico inserido pelo governo na exposição de motivos:

Figura 1. Fonte: Exposição de Motivos PEC 287/16. Dados da OCDE 2012.

 

Nós já vimos que a expectativa de vida nos países acima usados pelo governo como modelo é, em média, 6 anos maiores do que a expectativa de vida brasileira.

 

Sabemos, segundo dados da própria OCDE, que desses países apenas o México possui uma taxa de informalidade no emprego maior do que a brasileira. Ou seja, a taxa de informalidade no emprego no Brasil é bem diferente da realidade dos países ‘modelos’ selecionados pelo governo.

 

Para completar a análise, proponho compararmos a jornada de trabalho anual nesses países com a realidade brasileira.

 

Temos que a média de horas trabalhadas nos países da OCDE é 1.766 horas por ano. No Brasil, legalmente a carga de trabalho é 2.112 horas por ano. Usando dados do IBGE, temos que a média de horas efetivamente trabalhada pelos brasileiros foi de 39,9 horas por semana em 2015. Em 48 semanas no ano (tirando 4 semanas de férias), isso totaliza em 1.915 horas trabalhadas.

Figura 2. Fonte: OCDE e IBGE. Elaborado pelo autor.

 

Temos então a seguinte realidade:

Figura 3. Fonte: OCDE e IBGE. Elaborado pelo autor.

 

Um brasileiro trabalha, em média, 149 horas a mais em um ano que um cidadão de um país membro da OCDE, e 221 horas a mais do que cidadãos dos países usados pelo governo para justificar a idade mínima de 65 anos.

 

Hoje, existe autorização legal para que essa diferença chegue a 418 horas. Isso são mais de 10 semanas de trabalho (jornada de 40 horas) por ano.

 

Para ilustrar o quão distante são as realidades, elaborei o gráfico a seguir, onde considerei que, em todos esses países, a idade média para entrar no mercado de trabalho seria a mesma (20 anos) e a de aposentadoria também (65 anos).

 

Durante esses 45 anos, desconsiderados os períodos de inatividade, temos a quantidade média de horas trabalhadas por cidadãos desses países durante toda sua vida.

 

Em seguida, dividi esse total de horas por uma jornada de trabalho semanal de 40 horas, resultando em quantas semanas ‘padrão’, em média, os cidadãos desses países iriam trabalhar na vida.

 

Depois disso, dividi esse número por 48 semanas, para ver quantos anos, em média, o cidadão de cada um desses países trabalha, considerando a mesma jornada de trabalho semanal para todos.

 

Figura 4. Fonte: OCDE e IBGE. Elaborado pelo autor.

 

De outra forma, temos:

Figura 5. Fonte: OCDE e IBGE. Elaborado pelo autor.

 

Os dados acima evidenciam algo que, por mais óbvio que pareça, precisa ser dito: O Brasil possui uma realidade bastante diferente dos países da OCDE. Seja na expectativa de vida, seja na jornada de trabalho, seja na taxa de informalidade no emprego.

 

México, Grécia e Portugal estão enfrentando situações complicadas. Portugal e Grécia integram o grupo chamado de PIIGS, que são aqueles países da união europeia que estão enfrentando crises sócio-econômicas. México começou 2017 bem fragilizado com o “efeito Trump” e a cessão dos subsídios sobre a gasolina e o diesel.

 

A Polônia é um país ímpar, mesmo dentro da Europa, mas é um país que se consolidou por sua mão-de-obra barata. Isso deu resultados, pois gigantes do comércio estão migrando para a Polônia para uma produção mais barata. Em um país onde a vantagem comparativa é exatamente a desvalorização do trabalhador, não é absurdo que o mesmo trabalhador seja mais explorado do que em outros locais da Europa. (Nesse sentido, é bom esclarecer que as alterações do câmbio e os investimentos estruturantes de mais de 250 bilhões de euros entre 2007 e 2020 são fatores importantes para a situação da Polônia, que não se deve exclusivamente à política implementada).

 

O Brasil deve definir se suas reformas irão pavimentar seu caminho para um futuro glorioso ou se irão cimentar as vexatórias desigualdades existentes.

 

De um lado, temos a possibilidade de pensar no futuro da nação e focar nossos esforços na criação de mecanismos mais justos de seguridade social.

De outro, temos a opção de consolidar o Brasil como um país destinado a servir os outros às custas da saúde e do bem estar de nossa população.

 

Reformas nos sistemas previdenciários são salutares, visto que a realidade da população muda com o passar do tempo. Note que a palavra realidade apareceu novamente na frase anterior e não foi coincidência. O propósito de uma reforma previdenciária deve ser readequar o sistema previdenciário à nova realidade dos integrantes desse sistema, e não aplicar a uma população um modelo previdenciário importado de outra realidade.

 

A questão, então, não é ser contra a Reforma proposta pelo governo pelo desejo de que as coisas continuem como estão. A questão é que não faz sentido impor à população brasileira regras importadas de outros países.

 

Caso aprovada, a Reforma da Previdência irá resultar em cidadãos que trabalharão mais horas e viverão menos anos do que cidadãos dos países tomados como ‘modelo’ pelo governo.

 

A contraproposta que devemos fazer ao governo é a seguinte: proponha uma reforma aderente à realidade brasileira, embasada em dados concretos …

 

OU

 

… transforme o Brasil em um país desenvolvido da noite para o dia, com padrões de saúde, educação e segurança equiparáveis aos da Alemanha, da Finlândia e do Japão, para então aceitarmos sem questionar essa comparação com os países desenvolvidos.

 

Caso a Reforma seja aprovada da forma atual, o Governo estará garantindo que o Brasil continuará sendo um país onde se trabalha mais, ganhando menos, e onde a aposentadoria será um sonho cada vez mais distante da realidade do trabalhador.

 

Faz sentido um brasileiro trabalhar o equivalente a 45 anos, enquanto que na Alemanha, onde se vive, em média, 6 anos a mais do que no Brasil, um trabalhador trabalha o equivalente a 32 anos?

 

Existem fatores impossíveis de serem mensurados mas que agravariam ainda mais esse abismo entre as diferentes realidades. Nós sabemos que um brasileiro irá trabalhar mais horas que um alemão ao longo de sua vida, e também sabemos que a grande maioria dos trabalhadores brasileiros enfrentam transportes públicos lotados, demorados e em condições precárias. Sabemos que muitos profissionais brasileiros assinam uma folha de ponto que esconde as horas extras que foram feitas todas as semanas do ano por medo de perderem o emprego caso não aceitem a exploração. Sabemos que muitos brasileiros aproveitam seus finais de semanas para complementar a renda dirigindo um uber/taxi, fazendo enfeites/doces/salgados, prestando serviços de reparos/limpeza.

 

Tudo isso não entra na conta acima, mas certamente aumentaria ainda mais a diferença já evidenciada.

 

Indo por esse caminho, a mensagem ao trabalhador é clara:

 

Não descanse, não relaxe, não viva.

Cale a boca e trabalhe!