Em artigo, auditores destacam cinco conselhos sobre os riscos relevantes de corrupção nas compras públicas

Sentados ao balcão de uma bodega às margens da pista, três viajantes fazem uma pausa para o cafezinho recém coado e conversam sobre corrupção em licitações. “Pela experiência estampada em seus rostos, a conversa pode ser valiosa”. Leia na íntegra

Corrupção em licitações: cinco conselhos no tempo de um cafezinho

Por trás do noticiário de fraude em licitações, pode-se elencar cinco riscos que englobam quase todos os casos

 

Franklin Brasil Santos

Giovanni Pacelli Carvalho Lustosa da Costa

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

O assunto “licitação” ocupa em muito a literatura jurídica, a vida dos administradores públicos e os escaninhos da Justiça. É tema complexo, com efeitos de diversas naturezas, envolvendo aspectos de variadas áreas do conhecimento, gerando toneladas de doutrina, múltiplos interpretadores e atribulados operadores. Território árido, inóspito, onde caminhantes incautos se perdem, por falta de orientação.

 

Ambiente assim, intrincado, exige astúcia e disciplina, para saber reconhecer o que é realmente importante. A lógica de Pareto se aplica com perfeição ao emaranhado de passos, bifurcações, encruzilhadas, curvas e becos do caminho licitatório. Gastar energia em tudo, não vale a pena. O andarilho se cansa e não chega ao destino desejado. Mais vale o foco aguçado, um farol iluminando a busca pelos resultados pretendidos: contratações sustentáveis, a preço justo, que entreguem subsídios à efetividade das políticas públicas.

 

Nessa estrada tortuosa, que tal uma parada para um cafezinho recém coado, numa bodega às margens da pista, enquanto escutamos cinco conselhos de três viajantes sentados ao balcão, travando insólito diálogo sobre os riscos relevantes de corrupção nas compras públicas. Pela experiência estampada em seus rostos, a conversa pode ser valiosa.

 

Especificação, fala o primeiro viajante. Tudo começa aí. Pro bem ou pro mal. Partindo de uma necessidade, modela-se uma solução. Espera-se, obviamente, que a necessidade seja legítima, que represente valor a ser entregue à sociedade. E espera-se que a solução escolhida seja, de fato, capaz de atender à necessidade de modo efetivo e da forma mais vantajosa.

 

De nada adianta comprar bem aquilo que não se precisa. Ou, mesmo que seja útil, pagar mais caro do que outra solução igualmente capaz de resolver o problema. A literatura sobre corrupção frequentemente aponta para o risco de o gestor corrupto escolher investimentos inúteis ou pouco relevantes para os cidadãos, mais preocupado com as chances de lucros pessoais.

 

Supondo uma necessidade legítima e uma solução adequada, o risco de corrupção está na seleção indevida de requisitos, sem fundamento, sem justificativa, que levem ao direcionamento ou favorecimento ilegal. Licitar, na essência, é restringir competição, pelo emprego das ferramentas que a legislação permite, como mecanismo de gestão dos riscos de contratar o que não é vantajoso.

 

O limiar da legalidade está em fundamentar as escolhas e as restrições realizadas. E a especificação do objeto é o principal momento de escolhas do comprador, em termos de características, formatos, modelos, encargos, desempenho, indicadores.

 

Surge, então, nessa etapa, a obrigação de construir critérios que atendam à necessidade e, ao mesmo tempo, não direcionem a competição. Isso exige paciência, dedicação e profundo respeito pelo estudo apropriado do que se pretende adquirir.

 

Superfaturamento, explica o segundo viajante, também é um risco gravíssimo. Comprando em nome dos contribuintes, espera-se que o gestor público observe o preço de mercado. Parâmetro traiçoeiro, pois nem sempre é simples definir a faixa de preços aceitáveis, especialmente em momentos de crise de oferta e demanda ou quando se buscam objetos específicos, personalizados, com características diferentes do padrão. Superfaturar tem mais de significado. Pode se referir a preços, quantidades ou qualidade.

 

Em licitação, antes da execução contratual, o superfaturamento se materializa pela proposta com preço exagerado, superior ao aceitável, mas também pode existir pela homologação de quantidades acima do necessário, ou por especificações que não serão atendidas na execução, preparadas para serem substituídas por requisitos de menor qualidade. Em todos os casos, o que se espera é gerar lucros ilegítimos quando o contrato for executado. São riscos fortemente associados à etapa de planejamento da contratação, mas que se materializam depois de assinado o contrato.

 

Esse talvez seja o risco mais comum na corrupção que permeia as compras públicas. Quem comete fraude na licitação está buscando, invariavelmente, a recompensa pelo crime nos ganhos espúrios da execução contratual. Ou o fornecedor vai inflar o preço, ou vai fraudar a entrega, seja na quantidade, seja na qualidade ou em ambos.

 

O preço é mais visível, em especial em tempos de transparência, mas a entrega pode se camuflar em controles internos bagunçados, fragilidades e mentiras em inventários, estoques, romaneios, fiscalização. Onde o controle interno é permeável, a corrupção encontra terreno fértil.

 

Publicidade, não esqueçam dela, o terceiro dos viajantes alerta. Um processo licitatório verdadeiramente disputado é a garantia de um preço justo para o contratante. Mas, para ter concorrência, tem que existir publicidade. Não basta publicar a coisa no diário oficial. É preciso, primeiro, entender o mercado, como os fornecedores se organizam, que tipos de mercadorias ou serviços estão disponíveis, que condições e encargos são mais comuns. Como os fornecedores tomam conhecimento das oportunidades.

 

Os custos de participação, de oferta de proposta, as dificuldades na compreensão das regras, da leitura de editais, de obtenção de documentos, de uso dos sistemas. Divulgar as licitações deve ser realizado da maneira mais ampla e abrangente, para o máximo de potenciais interessados, de modo ativo e efetivo. Adotar mecanismos de fácil compreensão, uso e baixo custo para processar as disputas é fundamental para atrair mais concorrentes.

 

Habilitação, volta a falar o primeiro viajante. Um risco clássico. Tem a ver com a competitividade, de um modo mais explícito. Jabuti não sobe em árvore sozinho. Empresas recém criadas, de amplo espectro de objetos oferecidos, que vendem de alfinete a foguete, sem histórico no mercado, sem instalações proporcionais aos negócios que realizam, sem funcionários, sem veículos, sem equipamentos, cujos sócios figuram em programas sociais, administradas, na prática, por terceiros, procuradores com amplos poderes, empresas de fachada, de papel, licitantes fake. Aparecem com incômoda frequência nas operações especiais que apuram fraudes em licitação. Materializam simulações, montagens, processos ou disputas de mentirinha. Por vezes são empresas criadas pelos próprios agentes públicos envolvidos, e que servem a esquemas corruptos.

 

Conluio, meus caros, é outro risco que merece atenção, retoma o segundo viajante. E nesse caso, o gestor, em geral, é vítima. Claro que pode se falar em conluio dos fornecedores com os compradores. Mas, se for assim, os riscos de que já falamos estão embutidos. Aqui, o risco é de combinação entre os próprios fornecedores, sem que o gestor esteja envolvido.

 

É o oportunismo dos licitantes, capazes de formar cartéis, combinar preços, unir esforços para prejudicar o comprador. Será preciso ficar de olho em indícios de disputa simulada, falta de apetite competitivo, rodízio de propostas, licitantes apáticos, que perdem ou são desclassificados e não recorrem, não reclamam, alguns nem comparecem às disputas. Propostas de cobertura, abstenção, vontade deliberada de perder, perdedores contumazes, são alguns dos exemplos de como esse risco se materializa.

 

Consumido o cafezinho, termina a animada conversa e os três viajantes se despedem do bodegueiro, agradecem a hospitalidade e seguem caminho, comentando que além da licitação, existem os cinco maiores riscos da execução do contrato. Mas esse é tema pra outro dedo de prosa à beira da estrada infinita da gestão pública. Se você tiver tempo pra um cafezinho…


Franklin Brasil Santos – Auditor Federal de Finanças e Controle e Mestre em Controladoria e Contabilidade (FEA/USP). O texto representa a opinião do autor e não tem caráter institucional.

Giovanni Pacelli Carvalho Lustosa da Costa – Auditor Federal de Finanças e Controle e Doutor em Ciências Contábeis (UnB). O texto representa a opinião do autor e não tem caráter institucional.

Marcus Vinicius de Azevedo Braga – Doutor em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (PPED/IE/UFRJ) e autor de livros na área de controle governamental