Artigo de Marcus Braga é destaque em site de Licitações e Contrato

Com o título “Gestão de contratos: Sorte tem quem acredita nela”, texto fala sobre a importância desse instrumento de mediação da relação dos governos com os particulares

Gestão de contratos: Sorte tem quem acredita nela

por Marcus Vinícius Azevedo Braga*

 

Nicolau Maquiavel, na sua magnífica obra “O príncipe”, no capítulo XXV, traz uma interessante reflexão, que com a permissão do leitor, transcreverei um pequeno excerto:

(…) Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso. Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques e anteparos para contê-la (…)

Enquanto o Brasil estava sendo “descoberto”, nosso emérito italiano já sabia da importância dos governantes se prepararem para a incerteza. E tal lógica se faz necessária, cada vez mais nos estados modernos, passados mais de quinhentos anos, em especial em relação a gestão de contratos, que relacionam atores privados que fornecem produtos e serviços que suportam a implementação de políticas públicas.

A Instrução Normativa n ͦ 05/2017 do então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, na esteira das inovações trazidas pela Instrução Normativa Conjunta nº 1/2016/MPOG/CGU, trouxe a agenda da gestão de riscos para o mundo das licitações e contratos, uma visão ratificada pela nova lei de licitações que aguarda a sua sanção presidencial. Sistematiza-se a preocupação do gestor com a criação de diques diante de rios da incerteza, na metáfora de Maquiavel.

Claro que todos esses atores, em especial os gestores e fiscais de contratos, gerenciavam seus riscos antes disso. Mas, isso se dava de forma empírica e informal. A sistematização desse processo, e a formalização que possibilita a aprendizagem e a responsabilização, somado ao incremento da capacitação, são os divisores de águas nesse novo momento da relação contratual do Estado com os agentes privados.

Para reduzir os custos de transação de novas contratações, assumem-se desde a Lei de licitações da década de 1990, modelos de contratos continuados, com durações que podem extrapolar um quinquênio, o que enseja, em um cenário tão complexo e incerto, um exercício de identificação dos fatores que afetam esses contratos, seu quilate e as medidas a serem adotadas, consideradas as peculiaridades de cada contratação. Incrível termos vivido tanto tempo sem isso!

A gestão de riscos aplicada a contratos impacta diretamente na fiscalização, pois é ela que vai dizer a robustez da estrutura fiscalizatória e que pontos esses fiscais devem estar atentos. Uma boa gestão de riscos protege o fiscal de arbitrariedades, mas também facilita a identificação dos responsáveis que “rifaram” questões gritantes e que conduziram a situações de fracasso dos contratos, e consequentemente, das políticas públicas por eles suportadas.

Importante que essa gestão de riscos dos contratos tenha uma dimensão de transversalidade. Contratos de limpeza tem características comuns em toda a Administração Pública, independente da natureza do órgão. Isso implica em riscos padronizados que são observados e que demanda tratamentos similares. O mapeamento desse universo de riscos padronizados e de correspondentes salvaguardas pode ser um instrumento de fortalecimento dos processos de gestão de riscos dos contratos, pela aprendizagem organizacional.

Da mesma forma, o contrato de limpeza da universidade X tem diferenças do contrato de limpeza do hospital Y, e essa peculiaridade, essa customização, precisa ser captada. Risco é contexto, já diz a ISO 31000/2009, e faz-se necessário identificar os traços de nossa organização, materiais, estruturais e de pessoal, que afetam a gestão de nossos contratos, para que não nos façamos surpreendidos por dissabores.

Como se vê, a gestão de riscos de licitações, e no caso desse artigo, dos contratos administrativos, não é apenas uma formalidade a ser cumprida pelo preenchimento de uma tabelinha. É um mecanismo gerencial de excelência e que contribui com o sucesso de um instrumento de mediação da relação dos governos com os particulares, em um cenário no qual as políticas públicas dependem cada vez mais das contratações, e que os eventos de corrupção figuram de modo geral no exercício da gestão contratual.

Parafraseando a música de Fernando Mendes que figura no título desse artigo, na gestão contratual “(…) não adianta ir à igreja rezar e fazer tudo errado, você quer a frente das coisas olhando de lado.” A incerteza está aí, desde sempre, mas como diz Maquiavel, ela é só a metade das questões, e cabe a nós, pelo livre arbítrio, nos proteger das ameaças para assim melhor gerir nossos contratos. E se for reclamar depois, que saibamos o que deixamos de fazer, para não repetir os erros.

* Doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ (GPP/PPED/IE/UFRJ). Auditor Federal de Finanças e Controle. Autor de livros na área de controle governamental.

 

Fonte: publicado originalmente em Portal L&C