“É possível se falar de sandboxes regulatórios anticorrupção?”

AFFC Marcus Braga assina como um dos autores do artigo publicado no portal de notícias especializadas no acompanhamento jurídico e institucional do Brasil. Leia na íntegra

“É possível se falar de sandboxes regulatórios anticorrupção?”

 

Decorrência lógica do entendimento de que a Lei Anticorrupção (LAC) trata-se de medida regulatória (1), a pergunta que intitula esse artigo provoca o leitor a refletir sobre a possibilidade de se utilizar dos instrumentos disponíveis na toolkit da teoria da regulação, sobretudo os sandboxes regulatórios(2), nos aspectos relacionados à promoção da integridade no setor privado. .

Cunhado pela British Financial Conduct Authority (FCA), inicialmente dirigido às medidas de inovação tecnológica trazidas pelas fintechs, porém difundido entre diferentes setores regulados, Sandbox, ou caixa de areia “ao pé da letra”, é uma ferramenta de regulação dinâmica, que incentiva o experimentalismo estruturado, permitindo que projetos inovadores sejam testados (produtos ou serviços) em ambiente regulatório controlado, sujeito a requisitos diferentes dos rotineiramente aplicáveis.

A teoria indica os sandboxes como solução para o problema da “desconexão regulatória entre as normas e a dinâmica de mercado” (3), permitindo que reguladores atualizem seus normativos para acompanhar as necessidades do mercado, constituindo um mecanismo de promoção da qualidade da prática regulatória.

Desde o primeiro experimento, realizado em 2016 (4), sandboxes regulatórios são uma tendência mundial. No Brasil, reguladores do sistema financeiro nacional, sobretudo do mercado bancário, de seguros e de valores mobiliários, são os precursores na adoção desta ferramenta.

Sendo um assunto que se encontra na fronteira da ciência, é, portanto, campo aberto para discussão e pesquisa, o que nos encoraja a questionar sobre a possibilidade de se utilizar sandboxes na regulação anticorrupção.

Pois bem! A LAC, enquanto marco regulatório da política anticorrupção, contempla um plexo de mecanismos de enforcement e de incentivos visando a promoção da integridade no setor privado, notadamente, em sua relação com o setor público; tem, portanto, o propósito de equacionar os esforços anticorrupção dos governos com ações também do setor privado, dado o mutualismo dos benefícios sociais.

A regulação anticorrupção, assim como qualquer outra atividade regulada, se sustenta em uma gama de prescrições, normas operacionais e procedimentos exigíveis das empresas que, sob pena de serem sancionadas, buscam o seu cumprimento (compliance). Ocorre que, algumas das medidas exigíveis, à exemplo das aplicáveis aos “programas de integridade”, previstas no Decreto nº 8.420/2015 (capítulo IV), são igualmente exigidas de “Chico” e de “Francisco”, ou seja, empresas de diversos portes e naturezas, gigantes ou nanicas, de qualquer ramo de atuação, são submetidas ao mesmo regramento operacional, via de regra. Há um receituário padrão demandado das empresas na promoção da integridade, sem considerar sua capacidade de adimplir às regras e até mesmo, a necessidade de exigi-las.

Neste cenário é que se insere a ideia de sandboxes na regulação anticorrupção, buscando incentivar ambientes de inovação em accountability, visando reconectar regulador e regulado, com vistas a perseguir a efetividade dos programas de Compliance anticorrupção, aliando customização, inovação e contextualização. Seriam bem-vindas, portanto, ideias que tornem determinado procedimento mais eficiente, mais objetivo, mais fácil de ser alcançado, e isso só é possível com experimentação e um espírito inovador.

Inovar na regulação anticorrupção, nessa proposta, poderia ser repensar as exigências existentes para os programas de Integridade, de modo a torná-los mais úteis para que organizações atinjam suas finalidades estratégicas de forma íntegra.

 

Em outras palavras, viabilizar inovação em compliance, partindo do pressuposto de que a qualidade passa por não vincular as empresas ao “como fazer”, mas também ao “por que” adotar determinada medida.

 

Pela lógica atual da LAC, a comprovação de que os fins do compliance foram atingidos se dá pela análise dos meios, minunciosamente padronizados no Decreto n ͦ. 8.420/2015. Entretanto, a excessiva parametrização dos critérios de atendimento obrigatório, apesar de conferir segurança e padronização para regulador e regulado, pode incentivar as empresas à adoção de medidas meramente formais, sem compromisso com a finalidade da norma, qual seja a busca da integridade na relação público-privada. Isto porque, a vinculação aos padrões universais desconsidera o fato de que práticas corruptas são operacionalizadas de modo diferente, a depender das características de cada organização e de cada negócio.

Essa visão finalística dos programas de integridade é similar àquela adotada pelo DOJ, o Departamento de Justiça norte-americano.  Em recente atualização (5), a norma orientativa para avaliação de programas de compliance em empresas investigadas endereça três perguntas fundamentais, quais sejam: (i) O programa de compliance é bem desenhado?; (ii) O programa de compliance é implementado de boa-fé? (iii) O programa de compliance funciona na prática?

Por mais que ainda se faça um “checklist” formal dos mecanismos clássicos de um Programa de Integridade, a avaliação carece de subjetividade, com requisitos de efetividade, que imponham à comprovação, por parte da empresa, de que os meios escolhidos são adequados para os fins de prevenção, detecção e remediação.

O risco de inovar nessa seara é semelhante a qualquer tentativa inovadora; os benefícios, também.

Empresas mais conservadoras podem adotar os mecanismos já consagrados em centenas de benchmarks; as mais ousadas, e que necessitam de flexibilidade, teriam liberdade para buscar novas formas de promover a integridade nas relações, sem correr o risco de serem penalizadas por não ter adotado a “cartilha” pré-estabelecida pelo regulador.

Em termos práticos, esse tipo de inovação regulatória pode se restringir a determinado segmento – como para startups, naturalmente mais propensas a buscarem soluções inovadoras, de modo a consolidar boas práticas e promover ajustes antes de adotar determinada medida como padrão regulatório. Para os regulados com intensiva interação com atores governamentais, seja pela via da tributação, seja pelo campo das licitações públicas, uma experiência inovadora, que torne a sua estratégia de compliance mais customizada, mais eficiente e que lhes imponha menos custos de transação, pode ser uma excelente oportunidade.

Neste sentido, os sandboxes, enquanto experimentos calcados em regras consensuais, em ambiente controlado e com normativos específicos e bem definidos, parece ser uma boa saída para conferir mais efetividade à estratégia de combate à corrupção. As políticas públicas, notadamente a política anticorrupção, tem que ser desenhadas para permitir o aprendizado com base em experimentação; caso contrário, perderão aderência não só nos setores da chamada economia 4.0, onde a dinâmica inovativa é a base, mas também em atividades da economia tradicional, como no caso do complexo e dinâmico setor de infraestrutura.

Por sinal, as características multifacetadas setoriais da infraestrutura reúnem bons argumentos para a proposição de experimentos, especialmente pelas inúmeras facilidades de recortes e enquadramentos, vez que é possível contar com grande número de agências subnacionais de expertise técnica reconhecida nos mais variados tipos de serviços delegados, à exemplo dos setores  de saneamento, de transporte e de energia, com diferentes formas de incidência de corrupção, que necessitam de estratégias de compliance customizadas. Acredita-se que empresas de setores de infraestrutura, possivelmente mais expostas às práticas corruptas, dada sua grande interação com o setor público, teriam interesse em uma regulação mais efetiva e menos onerosa, beneficiando-se dos avanços dessa discussão junto aos reguladores.

Por fim, cabe dizer que este artigo se propôs, de modo exploratório, a estimular o debate sobre a necessidade de se inovar nas práticas regulatórias anticorrupção, sendo os sandboxes um dos caminhos instrumentais possíveis. A corrupção, tão ligada à ideia de conformidade, pode sugerir que sua prevenção está ligada à padronização e à quantidade das medidas-salvaguardas impostas pelo Estado. Entretanto, para uma política de compliance que busque a efetiva mitigação da corrupção na relação público-privada, é imprescindível que se considere as características de cada mercado e das organizações. Afinal, não é objetivo da LAC a punição de empresas ou a exigência do cumprimento de regras “by the book”. Ela é mais, e busca ser um mecanismo de promoção da integridade no setor privado. É preciso, portanto, inovar em relação às práticas atuais.

 

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Referências:

https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/uma-otica-regulatoria-para-a-lei%E2%80%AFanticorrupcao-30072020

https://www.gov.br/startuppoint/pt-br/programas/sandbox-regulatorio

https://www.editorajc.com.br/sandbox-regulatorio-no-brasil/

https://blogs.worldbank.org/psd/four-years-and-counting-what-weve-learned-regulatory-sandboxes

https://www.justice.gov/criminal-fraud/page/file/937501/download


Autores:

CARLOS HENRIQUE NASCIMENTO BARBOSA – Advogado, Mestre em corrupção e Governança pela University of Sussex;

DANIEL MATOS CALDEIRA – Doutorando em Administração Pública pela Universidade de Lisboa.

MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA – Doutor em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (PPED/IE/UFRJ) e autor de livros na área de controle governamental.

SANDRO ZACHARIADES SABENÇA – Graduado em Direito e Contabilidade. Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.


Fonte: publicado originalmente no Jota