AFFC Marcus Braga é um dos autores do artigo “O dilema do apetite ao risco e a tolerância zero”

“Existem atos de corrupção que são pecadilhos, e outros que são grandes esquemas, e o mundo real clama por ferramentas que limitem esses esquemas, que têm a sua raiz em questões muito mais complexas do que pequenas travessuras”. Leia na íntegra

 

O dilema do apetite ao risco e a tolerância zero

Qual o problema de se trabalhar com um risco zero de corrupção?

 

JOÃO SOUZA NETO

MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA

PEDRO HENRIQUE SOUZA

 

A entrada da agenda de integridade no setor público e privado, como uma das

respostas institucionais à crescente percepção da corrupção como um problema

central, na esteira dos eventos capitaneados pela chamada Operação Lava Jato, teve

a questão dos riscos para a integridade tratada de forma tímida, como se percebe

em uma análise das produções sobre o tema que tem vindo à público

recentemente.

 

Presente no inciso V, do art. 42, e no parágrafo único do art. 41 do Decreto nº

8.420/2015 (Regulamento da Lei anticorrupção), bem como no inciso III, do art. 19

do Decreto nº 9.203/2017 (Política de Governança do Governo Federal), a questão da

gestão de riscos para a integridade assume uma positivação maior no Guia Prático

de Gestão de Riscos de Integridade da Controladoria-Geral da União (CGU), datado

de 2018, reforçando essa instrumentalização da questão desse tipo específico de

risco, como uma forma sistemática de lidar com a pauta da corrupção.

 

Para que essa agenda anticorrupção tenha concretude e, consequentemente,

efetividade, em especial no seu capítulo de promoção da integridade, será inevitável

que a questão da gestão de riscos entre em campo, pois esta permite não só a

identificação e valoração das ameaças, como possibilita uma política de integridade

harmonizada à gestão da organização e ao contexto no qual ela está inserida.

 

Pesquisadores da área jurídica se debruçam sobre tema tão recente, reforçando a

importância dessa gestão de riscos para a integridade quando denotam que “no que

diz respeito aos riscos de integridade, estes estão vinculados a eventos incertos cujas

consequências e impactos possíveis ferem princípios, normas internas da entidade e

legislações relacionadas à fraude, à corrupção e à integridade, em especial as

relacionadas à Lei Anticorrupção brasileira e normas internacionais (FCPA, UK Bribery

Act, entre outras).”[1]

 

Considerando-se que, mais cedo ou mais tarde, a questão da gestão de riscos para a

integridade vai se tornar relevante na pauta anticorrupção, existe um dilema que

precisa ser enfrentado e sobre o qual este breve artigo pretende lançar algumas

luzes: o apetite ao risco para a integridade.

 

Desta forma, dentro da discussão tradicional da gestão de riscos, o apetite ao risco

se mostra como o grau de risco que uma organização está disposta a assumir na

busca de atingir os seus objetivos.

 

As palavras-chave dessa definição são: “disposta”, que denota um reconhecimento

consciente e a aceitação do compromisso risco/desempenho; “busca”, que

reconhece que a organização pode não atingir seus objetivos, enquanto ainda corre

riscos; e “objetivos”, que destaca que o apetite deve ser sempre considerado à luz da

estratégia organizacional.

 

Atendendo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, temos que um apetite ao

risco “equilibrado” evita não só que a organização assuma riscos além da sua

capacidade, mas, também, que tolere riscos o suficiente para sobreviver e prosperar.

Denotando, em especial, que o próprio lucro é o resultado da assunção de riscos

corporativos.

 

Assim, o apetite a risco é melhor entendido como uma variedade de resultados

desejados entre o “demais” e o “insuficiente”, o que termina por carregar essa

questão de um certo grau de subjetividade.

 

Sendo a gestão de riscos parte integrante da governança corporativa, e da

governança pública, se especializa ainda mais quando se trata da questão dos

riscos para a integridade, o que leva a ensejar novos olhares sobre esta perspectiva.

Neste ponto, alguns entendem que o antes era denominado de apetite, nesse

sentido, ficaria melhor como aversão, posto que falar de aversão a riscos para a

integridade traz mais adequação, pois o mínimo apetite ao risco para a integridade

não traria benefícios organizacionais, caso assumido.

 

Sendo assim, os impactos decorrentes de sua materialização determinariam prejuízos financeiros e de imagem relevantes, além de trazer questionamentos éticos sobre o comportamento organizacional.

Todavia, dada a aridez desse tema da corrupção, seria possível uma organização

assumir publicamente, em uma declaração, que admite a possibilidade de um ato

corrupto ocorrer e para ele não serem adotadas medidas preventivas?

 

Esse é um dilema que perpassa a visão que temos da corrupção, até porque o

inventário de riscos de corrupção, ou seja, o elenco de eventos possíveis de

ocorrência e que possam afetar os nossos objetivos, pode assumir uma abrangência

e complexidade em tal nível que torne o plano de tratamento de riscos por demais

oneroso, inviabilizando essa gestão.

 

No mundo real, concreto, a corrupção existe, sendo impossível extirpá-la. E ainda, o

exercício de identificação desses riscos padece das dificuldades heurísticas de se

imaginar tais possibilidades.

 

Essa é uma verdade inconveniente, mas que tem lastro real e, ao fazer o

gerenciamento de riscos de corrupção, desnudam-se as possibilidades de

ocorrência destes delitos, valoradas estas possibilidades em termos de

probabilidade e impacto nos objetivos, e incluir tudo o que for levantado como

possibilidade no plano de tratamento como elegível, a decorrência de uma aversão

total ao risco, poderia ser uma profusão de custos de transação impostos pelas

salvaguardas adotadas.

 

Tal visão draconiana em relação a aversão ao risco para a integridade pode ser uma

fonte de descrédito das políticas de integridade, por gerar planos de tratamento

irreais. Uma das virtudes de quem trabalha na linha de frente da gestão de riscos é

aplicar em seu trabalho o princípio da razoabilidade, de modo que o exagero pode

ser tão fatal quanto a omissão em relação a um risco.

 

Neste ponto, temos que o exagero pode ser para mais ou para menos, ou seja, tanto

os proprietários dos riscos, em geral os gestores de primeira linha, quanto os demais

partícipes do processo, que acabam, por vezes, em aumentar ou subestimar os

impactos de um evento. E quando se fala de corrupção, paixões e medos sempre

geram vieses indesejados nesse quesito.

 

Ao apoiar tais gestores de riscos, é possível se observar três padrões distintos: (i)

aqueles tomadores de decisão destemidos, que minimizam as consequências de

seus atos, seja por dolo, ignorância ou por uma trilha tênue entre os dois, na

chamada “cegueira deliberada”; (ii) aqueles que, com temor reverencial pelos órgãos

de controle, têm medo da própria caneta, e, ao invés de agirem quando devem,

superestimando os riscos e padecendo de uma inércia temerária; e (iii) aqueles que,

apoiados por pro􀂦ssionais competentes na segunda linha, agem de acordo e

pautados em riscos apurados em um processo claro e razoável.

 

No cenário da análise e gestão de riscos para a integridade, à exceção dos corruptos

contumazes, observamos que a regra é o segundo tipo, estigmatizados no

fenômeno do “apagão das canetas”, de modo que seja a aversão ao risco, ou a

imposição inconsciente de que o risco para a integridade deve ser zero, faz com que

o medo paralisante cause também prejuízos ao desenvolvimento de atividades em

qualquer organização.

 

Sendo assim, a presente reflexão propõe que seria melhor que houvesse um

entendimento doutrinário e técnico customizado de que uma organização pode sim

aceitar níveis mínimos de corrupção, uma vez que não existem pessoas perfeitas e

que a organização trafega entre atores reais. Seres humanos não são máquina e,

mesmo que fossem, estas também são passíveis de bugs.

 

Um cenário que impõe uma taxonomia indigesta para o reino da moral, mas

necessária para o mundo da gestão, na qual se deve admitir que existem atos

corruptos mais relevantes do que outros, em uma régua que passa pelo valor

envolvido, pela capacidade de ocultar algo maior do que parece e, ainda, pelo seu

potencial de afetar direitos fundamentais dos cidadãos, em um consequencialismo

necessário para que seja instrumentalizada a política de integridade, saindo do lugar

comum de ações centradas apenas na sensibilização para promover uma cultura.

Para a gestão de riscos de integridade, não é muito relevante se o agente age com

dolo ou culpa, se é erro ou fraude, e sim que fragilidades estão por trás daquela

ocorrência, pois o foco da gestão de risco é o tratamento, com o posterior

monitoramento e, nesse sentido, cabe enxergar a corrupção como mais um risco

para a gestão, e que deriva, na letra de Cressey[2] e seu famoso triângulo, da

autonomia dos agentes, da sua cultura e contexto, e da fragilidade do sistema de

salvaguardas. Melhor controlar bem o risco para a integridade do que ter a ilusão de

se controlar tudo.

 

Mais Cressey, menos Lombroso[3]. Este, nos idos do século XIX, apresentou ao

mundo ideias de que a tendência para desvios poderia ser relacionada a fatores

genéticos e a formações fisiológicas.

 

Tal teoria já se passou por ciência e, por vezes, é retomada por estudiosos como

válida, bordejando a eugenia e trata a vilania de forma pouco sistemática, olhando de

forma reducionista o indivíduo, esquecendo deste e seu contexto. Uma visão que

suporta, em última instância, o maniqueísmo de um mal absoluto incorporado a

fascínoras e que precisa ser extirpado, no emblemático chavão da “tolerância zero”.

 

Buscando aproximar as competências gerenciais do mundo real, a recentíssima

norma ISO 37301(Sistemas de Gestão de Compliance), dispõe que a mera

abordagem baseada em riscos para a gestão do Compliance, não signi􀂦ca que a

organização em situações de baixo risco aceita a não conformidade.

 

Muito pelo contrário. Essa visão é um instrumento que auxilia as organizações a

focar sua atenção com recursos e pessoas nos riscos prioritários e de maior

criticidade. Uma questão de e􀂦ciência no trato da corrupção.

 

A ciência e a experiência mostram que essa abordagem de risco zero não só diminui

a instrumentalização da gestão dos riscos para a integridade, como torna ele refém

do discurso dissociado do real, distante de medidas que podem ter resultado nessa

luta pela mitigação da corrupção.

 

Sim, existem atos de corrupção que são pecadilhos, e outros que são grandes

esquemas, e o mundo real clama por ferramentas que limitem esses esquemas, que

têm a sua raiz em questões muito mais complexas do que pequenas travessuras.

 

 

[1] CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de. Compliance e gestão de riscos nas empresas estatais.

3º Ed. Fórum. 2020

 

[2] CRESSEY, D. R. Other People’s Money: A study in the social psychology of embezzlement.

Glencoe, IL: The free press, 1953.

 

[3] LOMBROSO, Cesare. O Homem Deliquente. Coleção Fundamentos do Direito Ed. Ícone, 2007.


JOÃO SOUZA NETO – Doutor em Engenharia Elétrica(UnB), professor universitário e certificado CRISC, RMP, FAIR.

 

MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA – Doutor em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (PPED/IE/UFRJ) e autor de livros na área de controle governamental.

 

PEDRO HENRIQUE SOUZA – Advogado, sócio do escritório LCADVS. especialista em Advocacia

Empresarial, Governança Corporativa e Compliance. Ouvidor da Rede Governança Brasil.

 

 

Fonte: publicado originalmente em Jota