A milionária farra do Cespe

Técnicos da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Receita Federal devassaram as contas do Centro de Seleção e Promoção de Eventos (Cespe), maior organizador de concursos do país. Após um ano de análise da contabilidade do órgão, vinculado à Universidade de Brasília (UnB), eles encontraram uma série de irregularidades que somam R$ 570 milhões. Elas vão de pagamentos ilegais a sonegação de impostos e compras sem explicação.

O Correio teve acesso, com exclusividade, ao relatório da CGU. Até então, o documento de 186 páginas era mantido sob sigilo absoluto. Ele serve de base para ações que estão sendo preparadas por procuradores da República contra os responsáveis por supostos desvios de verbas públicas. Entre eles, ex-dirigentes do Cespe e da UnB.

O Relatório de Ação de Controle da CGU contém documentos, análises contábeis e conclusões dos auditores. “As irregularidades se processaram em todos os setores e atividades do Cespe, incluindo a apropriação indevida de recurso públicos, os indicativos de manutenção de caixa 2 e caixa 3, além de despesas realizadas sem amparo e observância aos requisitos legais”, denunciam os auditores.

As conclusões da CGU são referendadas por procuradores do Ministério Público Federal (MPF) no DF que integram a força-tarefa responsável por investigar as denúncias contidas no relatório. Os procuradores não dão entrevista sobre a apuração, mas, por meio da assessoria do MPF, confirmam ter provas contra ex-diretores do Cespe. Tanto que começam a denunciá-los à Justiça Federal na próxima semana.

Câmpus Limpo
Técnicos da CGU e da Delegacia da Receita Previdenciária no DF analisaram as contas do Cespe de 1996 a 2005. A apuração começou em 31 de outubro de 2005 e terminou em 17 de fevereiro de 2006. Eles se debruçaram sobre documentos e informações armazenadas em computadores apreendidos na Operação Câmpus Limpo, desencadeada pela Polícia Federal em 19 de outubro de 2005, a pedido do MPF (veja arte).

Além desse material, os auditores recorreram a ferramentas como o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), o Sistema Nacional de Integração em Justiça e Segurança Pública (Infoseg) e declarações de Imposto de Renda. Pesquisaram informações sobre todos os ex-dirigentes e prestadores de serviço do Cespe.

No começo, os auditores estavam atrás de provas da sonegação de impostos, apontada pela Receita Federal. Um relatório preliminar da receita, divulgado em abril de 2005, revelou que o Cespe e seus prestadores de serviço haviam deixado de pagar R$ 22 milhões em tributos e contribuições.

Os dirigentes do Cespe foram acusados de omitir da Previdência Social remunerações pagas a funcionários contratados a prestar serviço à instituição. Eles recebiam pelos trabalhos sob a rubrica de “bolsas científicas”, isentas de pagamentos de tributos. Essa informação provocou a Operação Câmpus Limpo, que resultou em apreensões nos escritórios do Cespe nas casas dos dirigentes da instituição, no Distrito Federal, Rio de Janeiro (RJ) e Recife (PE).

200 mil receberam de forma suspeita

Estima-se que R$ 286 milhões foram pagos pelo Cespe a pessoas que não eram do quadro de funcionários do órgão sem que houvesse licitação


Os técnicos da Controladoria-Geral da União (CGU) levantaram todas as quantias pagas a supostos bolsistas e prestadores de serviço do Centro de Seleção e Promoção de Eventos (Cespe) de janeiro de 1996 a junho de 2004. Nesse período, 200.628 pessoas receberam dinheiro do órgão da Universidade de Brasília (UnB) sem passar por concorrência pública ou integrar o quadro de funcionários da instituição.

Ao todo, elas ganharam R$ 286 milhões. Na lista de beneficiários estão 57 ocupantes de cargos de direção da UnB. Ou seja: além do salário da universidade, eles recebiam de outra fonte, sem declarar a segunda à Receita Federal. Para burlar o Fisco, o Cespe pagava essas pessoas de forma fracionada, segundo os auditores da CGU. “As evidências demonstram a prática ilegal de fracionamento por supostos serviços prestados ao Cespe e sua classificação como ‘bolsas’, dando margem à sonegação de tributos e contribuição previdenciária, procedimento do qual se beneficiaram direta e indiretamente tanto gestores do Cespe e da UnB como os destinatários dos recursos”, acusam os analistas da CGU.

Eles afirmam ainda que ficou evidenciado “o desvio de recursos do Cespe para proporcionar complementação salarial ilegal aos 57 ocupantes de cargos de direção da UnB que recebiam regularmente do Centro de Seleção por supostos serviços prestados”. Da mesma ilegalidade se beneficiavam, segundo a CGU, servidores da UnB que não ocupavam cargos de confiança.

Ex-reitores
Entre os 57 beneficiários da UnB apontados pelos auditores estão os ex-reitores Lauro Morhy e Timothy Mulholland. O primeiro recebeu R$ 28,9 mil por serviços prestados ao Cespe. O segundo, R$ 900. Muito menos que a ex-diretora do Cespe, Romilda Guimarães Macarini, que esteve à frente da instituição de 1997 a 2005. Além de um salário de R$ 3.080 pelo cargo de direção, ela recebia uma média de R$ 9.953,27 mensais por serviços prestados à instituição que dirigia.

Na contabilidade do Cespe, chamaram a atenção dos auditores os pagamentos a Romilda Macarini em outubro e novembro de 2005. Em outubro, a diretora-geral se autoconcedeu R$ 13.242,92 a título de serviços prestados. E, de 1 a 11 de novembro de 2005, Romilda pagou a ela mesma mais R$ 10.333,64.

“No período de 39 dias, Romilda Macarini, utilizando-se da condição privilegiada de dirigente do centro e estabelecendo, ela própria, o valor a receber, apropriou-se do equivalente a 7,65 vezes a remuneração mensal bruta do cargo de direção CD-4 que exercia (R$ 3.080)”, ressaltam os auditores.

Sem concurso
Em um “mapa de lotação” elaborado pelo Cespe, datado de 4 de outubro de 2004, há os nomes de 308 prestadores de serviços permanentes ao Cespe. Juntos, ganhavam R$ 518 mil mensais. São servidores ativos e inativos, bolsistas e outras pessoas. Todos contratados sem concurso público. Além dessas 308 pessoas que recebiam regularmente, mereceu análise dos técnicos o pagamento mensal a 10 advogados. Juntos, até dezembro de 2003, eles ganhavam R$ 25,8 mil mensais para cuidar dos interesses do órgão vinculado à UnB. Eles e os outros 308 “prestadores de serviço” e “bolsistas” recebiam horas extras, 13º salário e férias, o que, segundo os auditores, caracterizava a relação de emprego.

Na documentação apreendida pela Polícia Federal durante a Operação Câmpus Limpo, os auditores da Receita encontraram ordens de pagamentos a “prestadores de serviço” do Cespe lotados em outros setores da UnB, como laboratórios. Na contabilidade do Cespe, alguns eram identificados como “free lancer” (trabalhador autônomo).

Passagens aéreas
Além das pessoas físicas, foram levantados os pagamentos a todas as empresas que prestaram serviço ao Cespe de 1º de janeiro de 2001 a 22 de novembro de 2005. As 32 maiores fornecedoras ou prestadoras de serviço receberam R$ 320 milhões. Quase tudo pago sem licitação ou qualquer justificativa legal para a falta de concorrência, segundo os técnicos da CGU. Entre as beneficiárias, uma empresa de turismo, que acumulou R$ 1,6 milhão, e a empresa aérea Varig, que faturou R$ 3,1 milhões. Na lista há ainda uma empresa produtora de eventos. Ela recebeu R$ 2,9 milhões do órgão da UnB em quatro anos.

Práticas diferentes
A atual gestão do Cespe garante que a maioria das irregularidades apontadas pela CGU foram extintas. Os prestadores de serviço citados, por exemplo, não atuam mais na instituição. “Para evitar problemas futuros, a gestão pro tempore (do reitor temporário Roberto Aguiar) instituiu o Conselho do Cespe, formado por todos os decanos da UnB e os diretores do centro, evitando que as decisões sejam tomadas por uma única pessoa, de maneira centralizada. O Conselho é a garantia de uma administração transparente de agora em diante”, afirma a direção do Cespe, em e-mail enviado pela assessoria de comunicação.

O centro, ainda segundo a assessoria, está em processo de reestruturação, “realizado sem a perda de qualidade de seus trabalhos técnicos e de confiabilidade. A assessoria ressalta que “a gestão pro tempore, desde o início do mandato, delegou a tarefa de investigação e apuração das irregularidades para as entidades de controle. Todos os dados solicitados pela CGU, Ministério Público e Polícia Federal foram disponibilizados, como é obrigação legal do administrador público”.

Sem resposta
Na noite de quarta-feira e na tarde de ontem, o Correio ligou para casa de Romilda Macarini para tentar marcar entrevista com ela. Em todas as oportunidades, a ex-diretora do Cespe não estava em casa. A equipe de reportagem deixou diversos recados com um homem que se identificou como marido de Romilda. Mas ele disse que ela não quer dar entrevistas porque está afastada do Cespe.

Já o advogado Aldo de Campos Costa, que defende o ex-reitor Timothy Mulholland, afirmou que ele e o cliente não se pronunciariam porque não houve ainda uma denúncia formal com base no relatório da CGU. “Desconheço tal relatório, portanto, não tenho como elaborar uma defesa”, alegou Aldo Costa. O Correio não localizou o advogado de Lauro Morhy nem o ex-reitor.

 

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