Problemas do substitutivo ao novo arcabouço fiscal
Desvio de rota para um passado que não deu certo
por Bráulio Cerqueira
Desde o enunciado, o substitutivo reorienta o projeto do novo arcabouço fiscal (PLP 93/2023) para atender, além do previsto na PEC da Transição (Emenda Constitucional 126/2023, art. 6º), a chamada PEC da Emergência Fiscal (Emenda Constitucional 109/2021), em particular o inciso VIII e o parágrafo único do art. 163 da Constituição Federal, que estabelecem que “Lei Complementar disporá sobre sustentabilidade da dívida” e que autorizam a aplicação das vedações às despesas previstas no art. 167-A da CF.
Assim, enquanto inicialmente o novo arcabouço fiscal se concentrava na desconstitucionalização do teto de gastos por meio de novas regras fiscais com parâmetros definidos no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), o substitutivo novamente os engessa trazendo-os para a Lei Complementar, além de recuperar dispositivos da EC 109/2021, aprovada quando as finanças públicas do país (e em todo o mundo) lidavam com os efeitos econômicos, sociais e sanitários da maior pandemia do século.
Resultante da precoce suspensão do estado de calamidade sanitária no início de 2021 e do consequente retorno da vigência do teto de gastos e de regras fiscais incompatíveis com as necessidades elementares da população, a EC 109/2021, de um lado, furou o teto de gastos naquele ano para reintroduzir o auxílio emergencial, e, de outro, congelou salários do funcionalismo, criou novas vedações à expansão de despesas, e incluiu previsão de Lei Complementar para tratar da “sustentabilidade da dívida”, conceito indefinido.
No final de 2021 e em 2022 o roteiro se repetiu: deterioração do sistema de proteção social, novas Emendas Constitucionais (ECs 113 e 123) para furar o teto inexequível de gastos, improviso das políticas públicas e manutenção do congelamento salarial de servidores civis.
Em tese o novo arcabouço busca romper o círculo vicioso acima; o substitutivo, ainda que parcialmente, o recoloca.
Não há necessidade de regulamentar uma definição ruim de sustentabilidade da dívida
O § 1º do art. 2º do substitutivo define como “compatível com a sustentabilidade da dívida pública o estabelecimento de metas de resultados primários, nos termos das leis de diretrizes orçamentárias, até a estabilização da relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e Produto Interno Bruto (PIB)”. O horizonte temporal de dez anos é, então, fixado para a demonstração, com projeções, da compatibilidade entre meta de primário e estabilidade DBGG/PIB.
Não é fácil definir sustentabilidade da dívida pública. Na literatura econômica não há convergência em torno do conceito: estabilidade da relação dívida/PIB, crescimento não explosivo, resiliência a choques, composição ótima do endividamento etc. Pressa, improviso e excesso de simplicidade costumam gerar equívocos, que é o que ocorre com o substitutivo.
Primeiro porque a Dívida Bruta (DBGG) não inclui os créditos/ativos financeiros do governo junto ao setor privado, tais como reservas internacionais, empréstimos do Banco Central e do governo ao sistema financeiro etc. Opção mais adequada seria o uso da estatística de Dívida Líquida do Setor Público Consolidado (DLSP), que inclui passivos (dívidas) e direitos financeiros do governo, captando melhor a situação patrimonial do setor público.
Segundo, porque os condicionantes da evolução da relação dívida/PIB incluem, além do resultado primário (nem sempre sob controle estrito do governo em razão do ciclo e das variações de receitas), o custo real da dívida (no caso brasileiro, muito próximo da taxa real Selic), a taxa real de crescimento do PIB, e ajustes cambiais e patrimoniais. Todas as variáveis importam, não apenas o resultado primário. Por exemplo, uma taxa Selic de 13,75% a.a., 7% acima da inflação, é compatível com a trajetória desejada da razão dívida/PIB?
A definição de um intervalo temporal de dez anos para a necessidade de demonstração da estabilidade da relação dívida/PIB também é arbitrária sem respaldo teórico ou factual.
Apresentar cenários probabilísticos para a trajetória da DLSP e da DBGG é tarefa corriqueira da gestão da política econômica, foi e sempre será feito. Regulamentar em Lei Complementar um conceito sustentabilidade de dívida inconsistente é um contrassenso.
Voltar com a ‘granada no bolso’ dos servidores?
O substitutivo coloca em ação para a União uma série de vedações ao aumento de despesas (incisos I a X do art. 167-A da CF). Tais restrições passam a operar nas seguintes circunstâncias:
- imediatamente após o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário: vedação à criação de cargos e empregos, à reestruturação de carreiras, ao reajuste de auxílios dos servidores, à criação de despesas obrigatórias, ao aumento de despesa obrigatória acima da inflação (exceto salário mínimo), à criação programas de refinanciamento de dívidas, à ampliação de isenções fiscais;
- após o segundo ano consecutivo de descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário: além das restrições anteriores são congelados salários e concursos;
- quando/se a despesa primária obrigatória ultrapassar 95% da despesa primária total: aplicam-se imediatamente todas as vedações descritas nos itens 1 e 2 acima (exceto isenções fiscais).
O substitutivo também prevê a possibilidade de suspensão episódica de alguma das restrições previstas, mas para isso é necessário o envio de projeto de Lei Complementar ao Congresso demonstrando a correção dos desvios em relação às metas por intermédio de outras medidas.
Em dezembro de 2022, os servidores públicos civis federais completaram seis ou quatro anos, a depender do caso, de congelamento de salários e auxílios, acumulando perdas reais de 30% a 40%. Neste intervalo o ingresso de novos servidores correspondeu a apenas 30% da força de trabalho que se aposentou. As “granadas no bolso” do funcionalismo civil, conforme orientação do ex-ministro da Fazenda, explodiram no período. Mesmo com o PIB estagnado há dez anos, a escassez de concursos e o arrocho salarial redundaram na menor relação gasto com pessoal/PIB do último quarto de século, 3,4% em 2022, contra, por exemplo, 4,8% em 2002, 4,6% em 2009, 4,3% em 2018. Agora, em 2023, as reposições salariais no governo federal, 6% ou 9% conforme o Poder, estancaram provisoriamente o decréscimo de renda, mas estão longe de repor prejuízos, muito menos de provocar descontrole de gastos.
É neste cenário, de carência acumulada de pessoal e de compressão de salários, que 8 das 10 medidas de ajuste previstas no substitutivo incidem direta ou indiretamente sobre servidores públicos e gestão da força de trabalho. Medidas que, na prática, foram aplicadas nos últimos anos e que chegaram à exaustão diante das necessidades de reestruturação de políticas públicas e dos prejuízos impostos aos trabalhadores civis.
Além disso, as despesas com pessoal civil e encargos contam, na Lei de Responsabilidade Fiscal (arts. 22 e 23), com gatilhos de contenção no caso – distante do atual – de crescimento desmesurado.
Sem entrar no mérito, o PLP 93/2023 já opera com a lógica de crescimento da despesa abaixo da receita. O imperativo de adequação da despesa global é permanente, constante. Cabe ao governo fazê-lo de acordo com as prioridades definidas no jogo democrático. A reintrodução, pelo substitutivo, da “granada no bolso” dos servidores nas hipóteses de descumprimento de pisos (meta de primário) e tetos (despesa obrigatória/despesa total) é desnecessária, autocrática, ideológica e desestruturante.
Enfraquecimento da face anticíclica da política fiscal, da democracia e da gestão
O novo arcabouço fiscal desconstitucionaliza a regra de despesa, prevê mecanismo de crescimento real condicionado a aumento de receita, e transfere para o PLDO do primeiro ano da legislatura a definição dos parâmetros da nova regra. Para 2024 a 2027, a regra proposta fixa um piso de crescimento real da despesa de 0,6%, um teto de 2,5%, com proporções de 70% ou 50% do crescimento da receita nos casos, respectivamente, de cumprimento ou descumprimento da meta de primário. O substitutivo mantém estes parâmetros, no entanto os pereniza ao retirá-los do PLDO e incorporá-los à Lei Complementar.
Além da ausência de previsão legal de mudança, um retrocesso mesmo em relação à regra constitucional que duraria 20 anos comportando ajuste (independente dos furos) em dez anos, restringir a variação da despesa a um intervalo fixo, normalmente abaixo da receita, e com teto próximo ao do crescimento tendencial do PIB das últimas décadas, aponta para redução do peso do investimento público e da provisão de serviços públicos na economia, bem como para resultados primários eternamente crescentes em desconexão com a realidade e o ciclo econômico, sem mencionar a negligência das alternâncias políticas próprias à democracia.
As mesmas considerações valem para os parâmetros do intervalo de tolerância (bandas) previstos no novo arcabouço fiscal para a meta de resultado primário. Incialmente fixados em 0,25% do PIB para cima e para baixo do centro da meta, valem na proposta original para o período 2024 a 2027, sendo recalibrados ao longo do tempo. No substitutivo são entronizados em Lei Complementar, sem qualquer relação com choques, ciclos e opções de política.
No plano da execução orçamentária, depois de 22 anos de Lei de Responsabilidade Fiscal, o novo arcabouço inova na direção certa ao, nos casos de risco de descumprimento da meta de primário, tornar o contingenciamento de despesas facultativo. Historicamente sua obrigatoriedade travou a execução do investimento e das despesas discricionárias ao longo do exercício financeiro gerando corridas desenfreadas nos ministérios por empenhos e liquidações no sexto bimestre, contribuindo não apenas para o acúmulo de restos a pagar, mas prejudicando o planejamento governamental. Em mais uma volta desnecessária ao passado, o substitutivo reintroduz a obrigatoriedade do contingenciamento privilegiando o controle em detrimento da eficiência na execução do gasto.
Em síntese: i) retirar a definição dos parâmetros das regras de despesa e de intervalo de primário do PLDO para a Lei Complementar eternizando-os, independentemente do ciclo econômico e das escolhas democráticas, é reincidir no fracasso do teto constitucional de gastos; a consequência provável será a recorrente alteração da própria Lei Complementar com custos políticos conhecidos; e ii) voltar à obrigatoriedade do contingenciamento é perder oportunidade de fortalecer a gestão pública.
Casuísmo no enxugamento das exceções à regra de despesa
Das 13 exceções à regra de limite de crescimento das despesas originalmente apresentadas pelo governo, a maioria delas já em vigor, o substitutivo reintroduziu no teto o aumento de capital de estatais não financeiras e o Fundo Constitucional do Distrito Federal. Por outro lado, excluiu explicitamente as despesas de estabelecimentos de ensino militares custeadas com receitas próprias ou de convênios com outros entes federativos ou privados.
O caso da capitalização de empresas estatais não financeiras é emblemático. Em 2019, fora do teto, possibilitou o aporte de R$ 7,6 bilhões à Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron). Agora a restrição retorna, sem explicação, sugerindo casuísmo do relatório substitutivo: no passado interessava viabilizar projetos estratégicos do governo, no presente não.
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Aprovado na semana passada o regime de urgência para apreciação do substitutivo na Câmara dos Deputados, cogita-se a votação da matéria sem emendas. Isso não impede a costura de melhorias no relatório. O tempo é curto, as necessidades de correção evidentes.
BRÁULIO SANTIAGO CERQUEIRA – Mestre em Economia. Auditor Federal de Finanças e Controle. Presidente do Unacon Sindical
Publicado originalmente em: JOTA